Uma Escapadela Altimétrica – parte I

Contraste.

Substantivo Masculino.

Oposição ou variação de luz, tons ou cores. Diferença considerável. Comparação para verificar diferenças. Oposição entre pessoas ou coisas.

in Diccionário Priberam da Língua Portuguesa.

 

Se uma palavra existe que permita ao Velopata descrever sucintamente o que foram aqueles três dias de Escapadela Altimétrica à qual ele (o Velopata), acompanhado do seu mais grande comparsa Agente da Autoridade Anónimo (AAA), se dedicaram, essa palavra é “Contraste”.

Mas não vamos queimar etapas do mesmo modo que eles queimaram pneu e pernas.

Desde a sua incepção ao nível messengeriano, o plano delineado por Velopata e AAA era simples – o Velopata deixaria o conforto do lar pelas vinte duas horas da noite de sexta-feira, dia vinte e oito do mês de Junho do ano de Nosso Senhor Joaquim Agostinho de dois mil e dezanove, com o intuito de fazer o rendez-vous com AAA em Montemor-o-Novo, que nos entretantos teria já deixado o reino amadoriense pelas duas horas da madrugada do dia vinte e nove de Junho, tendo curiosamente escolhido para local de rendez-vous o tasco montemor-o-novense onde o mui querido leitor sabe que as tomadas eléctricas não são de fiar (e que podeis recordar clicando aqui).

Rendez-vous feito, o intrépido e parv… Aventureiro dueto seguiria numa longa viagem pelo interior do reino alentejano, atravessando icónicos locais como Crato, Alter do Chão, Nisa e Castelo Branco, até chegar à cereja no final da pedalada que seria o Fundão, seguindo depois uns míseros quilómetrozecos até Paul, onde uma noite de soninho recuperador bom teria lugar.

Na manhã seguinte teria lugar a subida à Torre, acordando-se que esta seria feita pela Covilhã, traque desconhecido por ambos os dois e, finalizadas as hostilidades e empenão altimétrico, Velopata e AAA regressariam ao conforto de ambos os dois lares, apesar de logo à partida, por não se encontrar em plena posse de todas as suas funções técnico-táctico-velocipédicas, AAA ter notificado que o mais provável era a Cigarra ser colocada no comboio ainda na Covilhã, para a viagem de regresso.

Já o Velopata… Acarditando ser o maior, pensou fazer toda viagem ao comando da sua nobre montada Estrela Vermelha… Ida e volta e coiso.

Plano simples, certo?

Como sempre, T minus vinte e quatro horas em antes da primeira travessa ser engatada no pedal de encaixe e já a estupi… Aventura era presenteada com… Bem, o Velopata vai apenas escrever “condições adversas”.

Nunca esquecendo que o Velopata passaria uma noite inteira às claras, desbravando alcatrão entre Faro e Montemor-o-Novo, era ideia velopática que a vespertina noite fosse de um soninho preparador sublime. Como a sorte protege os audazes, o Velopata entendeu logo as dicas que o destino enviava – na vizinhança do lar velopático está localizado um pólo da A.P.P.C., Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral, que deixou para essa mesma noite a grande festarola de Santos Populares com direito a Arraial, Marchas Populares e tudo.

Conclusão – um cagaçal e uma cacofonia irritante de músicas pimba, quizombas e Marchas Populares até altas horas da noite, traduzindo-se em muito poucas horas de soninho preparador bom velopático.

E apenas por uma questão de respeito, nunca esquecendo que o Velopata é dotado de um humor negro sui generis, ele abster-se-á de fazer piadas com a Marcha Popular que ele vislumbrou através dos estores semi-cerrados que ineficazmente não impediam todos aqueles décibeis de estragar sono de Velopata e vizinhança, com desafortunados petizes, armados em Stephen Hawking em ácido, “dançando” em cadeiras de rodas e ao som de uma sanfona desafinada.

O contraste: a euforia marchante de uns e a irritação sonolenta de outros.

Preparativos feitos durante o dia, equipando a Estrela Vermelha com toda a parafernália necessária à estupi… Aventura que aguardava, óbviamente que um Velopata não conseguiu pregar um olhinho que fosse, ainda para mais quando se atenta ao facto que ele é um moçe que fica sempre nervoso nas iminências de pedaladas destas magnitudes.

Nervoso esse que teimou em matraquear o cérebro velopático até à hora da última refeição, a janta, na companhia de Srª Velopata e Velopatazinho;

– Eh lá! Mas que exagero de comida é essa?!?! – protestou o Velopata, observando o prato atascado em esparguete e legumes salteados que a Srª Velopata lhe servia.

– Então mas não tinhas dito que precisavas de carregar nos hidratos? – inquiriu a Srª Velopata.

– Isto dava para carregar os hidratos de todo um regimento de infantaria!

– Achas mesmo? Pois a mim parece-me as alarves doses cavalares normais que costumas comer…

– Isso é depois da pedalada. Não antes. Além de que ele está nervoso e quando está nervoso não tem assim tanta fome.

– E sabes porque é que estás nervoso? – questionou a Srª Velopata.

– Da pedalada? – retorquiu um Velopata a medo, sabendo de antemão que aquela questão da Srª Velopata trazia água na suspensão.

– Não, nada disso. Estás nervoso porque és parvo. Onde é que já se viu… Ir fazer duzentos e tal quilómetros sozinho pela serra à noite com um filho pequeno para cuidar em casa… Sabes, tens quarenta anos. Não precisas de provar nada a ninguém.

– Isto é como dizem os moços da bola, ele tem de provar a ele próprio. E há ainda a legião de milhares de milhões de seguidores do blogue que estão em pulgas pela leitura de uma boa aventura velopática. – explicou o Velopata.

– Acho que devias mudar o nome desse blogue.

– Uai, como assim?

– Em vez de te chamares Velopata, podias chamar-te Veloparvopata. Assentava melhor.

O Velopata, apanhado de bib shorts na mão, ficou sem resposta, virando sua atenção para o transbordante prato.

Nham, nham, Chomp, chomp, chomp, nham, chomp…

(Nota velopatóide: as fraquinhas onomatopeias acima representam o som de um Velopata enfiando a viola no saco, terminando assim a discussão familiar e carregando sobre o prato de modo a encher o corpo somali-anoréctico de combustível. Até porque todos sabemos como terminam as discussões do foro velocipédico com nossas respectivas – ou nós estamos errados ou elas têm razão.)

Vários cigarros de tabaco aquecido fumado acompanhados de um alguidar de cafeína, uma longa visita ao quarto de dar banho para uma considerável descarga de lastro e o relógio digital do Garmin indicava um minuto depois das vinte e duas horas da noite quando o Velopata se despediu da Srª Velopata e Velopatazinho, lançando-se no alcatrão, mas não sem antes ouvir umas solenes palavras de despedida da Srª Velopata que embalava um semi-adormecido Velopatazinho no colo;

– Já viste filho? Lá vai ele abandonar-te por mais uns dias…

O contraste: a excitação pré-pedalada de uns e o sentimento de abandono de outros.

Os primeiros quilómetros, já outras tantas vezes pedalados, foram surpreendentemente calmos, sem quaisquer sobressaltos de origem enlatada, algo que preocupa sempre um Velopata pois é certo e sabido que sexta-feira é sinónimo de saída nocturna e copofonia pelas muitas danceterias da urbe farense e todo o cuidado é pouco quando pululam pelo alcatrão muitos jovens adultos de bicho humano cujos efeitos alcoólicos os transformam em Vin Diesels de tuta e meia.

Apesar da Estrela Vermelha suportar o maior peso alguma vez carregado, a sua manobrabiliosidade não aparenta encontrar-se de todo afectada, as pernas do Velopata respondiam bem e imagine-se só – até essa rameira do São Pedro, habituada a sempre complicar a pedalada velopática, parecia colaborar, estando o vento ausente e as temperaturas amenas, deixando assim o Velopata confiante que a pedalada seguiria a bom ritmo.

Aproximadamente uma hora e vinte e três minutos depois, o Velopata atingia o que ele reconhecia ser provavelmente o último resquício civilizacional e tasco aberto nas longas horas que o aguardavam pelo interior da serra algarvia e alentejo profundo – A Tia Bia, localizada nessa espécie de Roma velocipédica onde todas as estradas algarvias parecem desembocar que é o Barranco do Velho, apresentando ainda sinais de vida com luzes acesas e alguns clientes na esplanada.

Sabendo que em outras instâncias aventureiras, a ausência de uma paragem para degustação da famosa Torta de Alfarroba poderá ter sido razão para o descambar da pedalada, mesmo não sendo moçe supersticiosofilíaco, o Velopata acarditou ser boa ideia uma rápida pit-stop, embutindo assim aquela dose extra de fuel açúcarado (afinal de contas, no lar velopático não tinha sido consumida sobremesa), para além de cafeínado.

– A´tão mas o que é que você anda aqui fazendo a estas horas? – questionaram em uníssono os incrédulos Funcioná… Trabalh… Colaboradores dA Tia Bia, já habituados à presença velopática só que em horas ditas “normais”.

Após rápida explicação velopática do simples plano, a conclusão era unânime;

– Cada qual com a sua pancada. – era o sentimento geral.

Em abono da verdade, ainda hoje, à hora desta publicação, o Velopata continua sem entender o que queiram os moçes dizer com aquilo ou quem é que tinha dado pancadas com o quê, onde ou a quem.

– Café cheio e Torta de Alfarroba se puder fazer o obséquio. – pediu o Velopata à simpática moçinha que o Velopata acardita nunca estar presente quando a ASAE lá realiza inspeções, caso contrário, já teríamos ouvisto em horário nobre na CMTv, uma qualquer manchete sobre exploração e trabalho infantil nA Tia Bia.

– Olhe, desculpe mas hoje não temos Torta de Alfarroba.

– Uai, como assim, não têm Torta de Alfarroba? – aquela afirmação deixava um Velopata em choque, mais um mau presságio para a demanda.

– Não temos porque hoje tivemos um número anormal de almoços e jantares de turistas alemães e holandeses que olhe… Adoraram as nossas tortas todas e surripiaram tudo.

Epá, um Velopata ainda consegue tolerar muita coisa em relação à estrangeirada lá de fora do país; que forçem os senhorios a expulsar os velh… Cidadãos vintage de suas habitações nas zonas históricas das nossas cidades para fazer érrebiénebis ou lá o que é, que transformem qualquer habitação decrépita em Hostel, que mutem qualquer pedaço de cadáver de suíno cozinhado e enfaixado entre duas fatias de pão em bifanas grúmet, que promovam a destruição do Parque Natural do Montijo para receber mais latas voadoras apinhadas de gentalha lá da terra deles… Agora acabar com a Torta de Alfarroba?!?!

É que mesmo a benevolênciosidade de um Velopata tem limites.

Comiserado, o Velopata foi foçado a manter-se apenas pela recarga cafeínada e nicotinada, e sabendo que o tempo não esperava para o rendez-vous com AAA, fez-se novamente à estrada.

O contraste: a alarvidade dos lambões estrangeiros lá de fora e a azia faminta velopática.

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A Estrela Vermelha repousa na esplanada dA Tia Bia.
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Com direito a um mísero cafézinho, o Velopata viu-se forçado a pensar nos milhares de milhões de seguidores do Insta velopático (que significa Instagram só que em mais cool), e mais ou menos que sorriu para a posteridade velocipédica na sua primeira pit-stop. E porque esta seria a única maneira da abandonada Srª Velopata saber que a esta ou aquela hora, ele (o Velopata), ainda se encontrava vivo.

Se algum dos mui queridos milhares de milhões de seguidores velopáticos não-civil já pedalou por ermos e serras durante a noite, certamente sabe que aquele belo mas quase inaudível som de nossos pneus sobre o alcatrão, desviadores e pedaleiro em árdua labuta, pode ser quebrado pelos sons da Natureza; desde o restolhar de ramos e pedras, o vento nos eucaliptos e ocasionalmente outras espécies de árvores, até ao som de bicharada… O Velopata até podia escrever, armado ao poeta do asfalto, que a lista de sons é interminável.

Só que não é.

Pouca coisa produz sons nos nenhures do breu serrano.

Findo aquele pequeno segmento de escalada final ao deixar A Tia Bia e o Barranco do Velho para trás, o Velopata embrenhava-se no negrume serrano de uma rápida e curta descida quando…

FSSSSSSTTTT!

Um som que acagaçou o Velopata até aos núcleos celulares de suas membranas esfíncterianas – dir-se-ia que ambos os dois pneus tinham acabado de rasgar!

E o Velopata que só transportava consigo um pneu suplente (já câmbras de ar, eram três, para o mui querido leitor ver que um Velopata não tem medo de carregar peso)!

Apesar de não sentir nada de estranho na manobrabiliosidade da Estrela Vermelha, o Velopata forçou-se a uma paragem para inspecção pneumática, tendo esta revelado o estado incólume dos recentemente adquiridos Vittoria Rubino Pro Graphene 2.0, que por sua vez também reforçavam o mais ou menos incólume estado da relação conjugal com a Srª Velopata que teria certamente sido abalado até às fundações se ele tivesse ligado para ela o vir salvar…

(Nota velopatóide: este novo modelo de Vittoria Rubino Pro, o tal já com grafeno versão dois ponto zero, apresenta ganhos marginais ao nível do aero que o mui querido leitor nem s´acardita – Palavra de Velopata!)

Ali, imobilizado no serrano breu nocturno, o Velopata olhou em volta – mas que raios teria produzido aquele som?

O contraste: a calmia serrana onde não se ouvistava vivalma e a pulsação acelerada e descontrolada do Velopata.

Sentindo um calafrio percorrer a espinha, o Velopata matutou como quem matuta mesmo apenas para chegar a uma inevitável conclusão – só podia tratar-se de uma armadilha de um daqueles cereal killers à filme de terror dos confins do refugo redneck amaricano, provavelmente fruto de uma incestuosa relação entre parentes próximos demais, genéticamente pouco saudável e cuja falta de eirios e condições de seus progenitores, não conseguindo vaga na A.P.P.C., Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral, levaria a que o abandonassem pela serra algarvia sobrevivendo porque alguma bicharada o havia criado e nutrido, para agora vingar-se do mundo que o abandonou predando quiçá até canibalizando incautos viajantes.

Findos inúmeros dias de buscas em vão, as Autoridades lá encontrariam uma vandalizada e ensanguentada Estrela Vermelha, já do Velopata, talvez restasse apenas uma parte de sua genitália semi-consumida porque nem mesmo um assassino canibal gosta de comer coisas grandes e duras (nunca esquecendo que o Velopata tem aquela herança genética africana de seu progenitor).

Ou era isso, ou… O Velopata viu filmes de terror a mais.

– Bem, o melhor é ligar o fonezinho e seguir pedalada com uma músiquinha a acompanhar, evitando assim estes cagaços porque ele só trouxe três bib shorts… – disse o Velopata para o fecho éclair do seu colete fluorescente da B´Twin que é da Decathlon que é da B´Twin e também porque falar sozinho alto e bom som ajuda a afastar o cagaço.

E assim, dotando a sua dilatada orelha direita com o fónezinho onde uma inspiradora músiquinha motivaria a parvoíc… Aventura velopática, ele (o Velopata), lançou-se novamente à estrada deixando o cereal killer do Caldeirão de sanguinárias manápulas a abanar.

Conhecendo bem o alcatrão da Mítica Estrada Nacional 2 entre Faro e Almodôvar, tendo já pedalado este segmento strávico em praticamente todas as condições horárias e climatéricas, o Velopata seguiu sem quaisquer outros sobressaltos – e foi quando o relógio digital do Garmin indicava uma hora e trinta minutos já da madrugada do dia vinte e nove de Junho do ano de Nosso Senhor Joaquim Agostinho de dois mil e dezanove que o Velopata chegou a Almodôvar, escassos setenta e cinco quilómetros cumpridos.

Apesar do Velopata habitar no reino algarvio, ele considera esta pequena vila alentejana de três mil habitantes como sendo parte integrante do seu quintal, dadas as inúmeras vezes que ele lá se desloca em treino.

Mas não importa o número de vezes que lá passe, sempre que o Velopata vê aquela brilhante obra de erário público que é a Ciclovia de Almodôvar, composta por uns quinhentos a seiscentos metros de uma espécie de tartan avermelhado que inclusivé atravessa uma ponte, o Velopata não consegue deixar de ficar com um sorriso nos bonitos lábios, lembrando-se de quanto não deve ter custado tão importante obra para a vida dos almodôvarenses.

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Isto sim é Ciclovia de classe. Porque era mesmo de uns seiscentos metros de absurdamente cara Ciclovia que necessitava a estrada onde meia dúzia de enlatados almodôvarienses passa diáriamente.

O contraste: a cidade farense sem uma única Ciclovia digna desse nome, e esta vila alentejana com uma toda supimpa que até uma ponte atravessa.

Mas o sorriso velopático, apesar de carregado de sarcasmo, seria prontamente castrado pelo som que se alevantava do centro da vila alentejana – um Arraial de Santos Populares.

(Nota velopatóide: depois do Arrail da A.P.P.C. agora mais este… Há ou não aqui um padrão que o Velopata não consegue explicar?)

Neste nevrálgico ponto da parvoí… Aventura, o Velopata necessitava urgentemente de uma paragem para importantes protocolos; repôr preciosa água nos bidons, libertar excesso de líquido da bexiga e aproveitar para dar ao serrote com recurso a uma das suas inúmeras barrinhas energéticas, para além do óbvio cigarrito de tabaco aquecido. Uma cafézada também não caíria nada mal.

Assim, colocava-se uma questão; arriscar uma carga de porrada dos muitos machos alcoolizados almodôverenses por acarditarem que aquele bonito gaiato de apertadas licras se tinha deslocado ao Arraial assim vestido apenas para lhes tentar roubar as gaiatas, ou procurar os Bombeiros que estão sempre dispostos a ajudar estúp… Intrépidos aventureiros?

Nos Bombeiro Voluntários de Almodôvar, o moçe da Recepção mostrou-se de uma simpatia inigualável, facilitando o acesso velopático ao quarto de dar banho e inclusivé à máquina de café, até que a inevitável questão surgiu;

– Mas a´tão o que é que vossemeçê anda aqui fazendo, de Biciclete a pedal a estas horas?

O Velopata prosseguiu com sua explicação, apenas para receber a mesma resposta, anteriormente ouvista nA Tia Bia;

– Bem… Cada qual com sua pancada.

E novamente o Velopata ficou a matutar como quem matuta mesmo em como, quem ou onde andavam à pancada. Estaria o Bombeiro a referir-se ao Arraial?

Relaxando pernas e mente em antes do segmento strávico que se avizinhava dos mais complicados da jornada, aquela quase superfície lunar pejada de crateras de meteoritos que compõem o alcatrão que separa Castro Verde de Aljustrel, o Bombeiro pediu licença e foi chamar os restantes colegas de turno que, aparecendo a conta-gotas, minutos depois já todos rodeavam a atração da noite, aquele alucinado que ia pedalar não-sei-quantos-quilómetros pela noite fora, colocando inúmeras questões.

Até que por entre o corpo de Bombeiros, uma voz ousou exclamar;

– Epá, essa é um Bêagá igual à minha!

– Uai, como? – indagou um atónito Velopata, tentando identificar quem teria proferido tamanho insulto.

– Sim, a sua Biciclete, é uma Bêagá igual à minha! Isso não é uma Prisma?

– Não, isso é uma Estrela Vermelha. – para bom entendedor como o mui querido leitor o é, não é necessário o Velopata explicar o “isso” dito e escrito a negrito e sublinhado.

Seguiram-se momentos de amena cavaqueira com muita risada geral enquanto o Velopata explicava as óbvias e notórias diferenças entre uma Bicicleta de Homem Comum (BH), e a Estrela Vermelha, mas sabendo que o relógio não parava de matraquear segundos, minutos e horas, o Velopata aproveitou para, em antes de se fazer ao alcatrão, esclarecer uma dúvida que o apoquentava; tendo em conta que todos os jovens e restantes alcoólatras em geral de todas as terras e terrinhas em torno de Almodôvar certamente marcariam presença no Arraial, não seria por demais perigoso meter-se à estrada em horas coincidentes com o término da festa e consequente retorno alcoolizado dos enlatados a seus lares?

– Nã se preocupe, aquilo tem lá sempre a patrulha da Gêéniérre à saída e lhe garanto que ninguém sai daqui a conduzir bêbado. Pode ir tranquilo.

E verdade seja escrita, assim foi.

Agradecendo toda a simpatia e auxílio prestados, o Velopata deixou os Bombeiros e terras almodôveiroenses para trás, navegando calma e descontraídamente pelas longas rectas que o levariam até às profundezas do reino alentejano, sendo apenas ultrapassado por nem uma meia dúzia de enlatados que mostraram sempre o maior dos respeitos para com este vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal.

Nas imediações de Castro Verde, o Sentido de Velopata (aquele em tudo semelhante ao dO Incrível Homem-Aranha, só que em carbono), disparou, à medida que toda uma nova cacofonia com um misto de “música” tecno, pimba e quizomba lhe chegou às belas orelhas dilatas.

O mui querido leitor pode nem s´acarditar mas… Então não é que em Castro Verde também decorria um gigantesco Arraial de Santos Populares?

Como pode um Velopata não escrever que todas as evidências apontam para a existência de um qualquer marafado complô divino para sempre lhe tentar dificultar e prejudicar a pedalada?

O contraste: a diversão boémia de uns e a tensão enrascada do Velopata.

Sentindo retesar todos os esfíncteres de seu bonito corpo somali-anoréctico na iminência do perigo que mais uma vez o espreitava, o Velopata pedalou ao largo do Arraial, observando toda aquela boémia pirosa e matutando como quem matuta mesmo em como seria atravessar todo aquele alcatrão meio lunar, meio pós-apocalíptico que separava Castro Verde de Aljustrel, acompanhado de enlatados alcoolizados.

Diz a ancestral sabedoria popular que a Sorte protege os audazes, no entanto, actualmente o Velopata acardita é que a GNR protege os… Vá, mais ou menos audazes – ainda no perímetro urbano de Castro Verde, justamente na entrada do complicado segmento strávico, uma patrulha da GNR efectuava uma Operação Stop, certificando-se que nenhum enlatado alcoolizado seguiria na mesma direção do Velopata.

Enquanto o Velopata suspirava de alívio ao pedalar por aquela visão de segurança, ele ia jurar ter ouvisto os lábios de um dos Agentes da Autoridade que o observava, soletrar algo semelhante a P-A-N-C-A-D-A, mas mais uma vez, quem andava à pancada, onde ou como, o Velopata não sabe e provavelmente nunca saberá.

Outra coisa que o Velopata também nunca saberá é se a GNR terá autuado muitos enlatados prevaricadores, assim impedindo-os de cruzar caminho com ele – verdade seja escrita, o Velopata nem se alembra de ter sido ultrapassado por nenhum enlatado durante aquele desaustinado segmento strávico em que calma e concentradamente ele tentou seguir uma linha segura no escasso alcatrão existente por entre tantas crateras, mas o que ele hoje sabe é que o principal problema deste troço não são os enlatados, alcoolizados ou não, ou mesmo as crateras e o generalizado mau estado alcatroado.

O problema, viria o Velopata a experienciar, são os Bunny Suicides.

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Exemplo de um típico Bunny Suicide.
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Um Bunny Suicide desafia o Exterminador Implacável a cumprir sua missão.

Durante muitos anos, o Velopata acarditou que Coelhos Suicidas não passavam dos devaneios cartonistas de um tal de Andy Riley. Hoje, ele (o Velopata), sabe que exemplares de Lagomorfos da família dos mamíferos Leporídeos com alucinados instintos suicidas são bem reais e um dos muitos não falados perigos das estradas portuguesas.

Um, dois, três, quatro Coelhos tentaram sua sorte suicida – saíam correndo do negrume das bermas para se atirar para debaixo da Estrela Vermelha, provocando extremas compressões esfíncterianas a um pobre Velopata, para além de disparar a sua cadência ventricular sem nenhuma necessidade.

Uma coisa é certa – se um daqueles Coelhos tivesse provocado o esbardalhanço velopático, hoje, não mais o Velopata seria um exemplar de Bicho Humano evoluído e incapaz de se alimentar de cadáveres de animais. Ele mudaria toda sua dieta, certificando-se que todas as refeições seriam à base de Coelho (pequeno-almoço incluído), até ter a certeza que essa espécie se encontrava extinta neste Terceiro Calhau a contar do Sol.

O contraste: o instinto suicida de uns e a vontade de pedalar, viver e ser livre de outros.

Conseguindo não concretizar os devaneios suicidas de nenhum dos Bunny Suicides alentejanos, o Velopata viu surgir no horizonte a placa indicativa de Aljustrel e dando graças a Nosso Senhor Joaquim Agostinho pela sobrevivência e proteção divina a este desaustinado segmento strávico, o Velopata decidiu efectuar uma pit-stop rápida para aquele cigarrinho pós-traumático.

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Duas Locomotivas em Aljustrel.

Findo o carregamento nicotinado pulmonar, o Velopata lançou-se novamente ao alcatrão e a parvoí… Aventura seguiu calmamente pelo interior do reino alentejano, rapidamente calcorreando os ondulantes quilómetros da Mítica Estrada Nacional 2.

Mas o destino não queria dar descanso ao já almariado esfíncter velopático – em antes da chegada a Ervidel, no horizonte velopático descortinavam-se dois pontos vermelhos que pareciam saltar em rápidos movimentos ascendentes.

Uma vez.

Depois outra vez.

Olhai, uma terceira vez.

À distância do chão que se encontravam, aquilo só podia ser uma coisa.

O.V.N.I..

Objectos Voadores Não Identificados.

Que certamente traziam no seu interior extraterrestres com ideias de experimentar suas sondas anais num pobre Velopata que, a sobreviver a tamanho Encontro Imediato de Sabe-se-Lá-Quantos-Graus, dificilmente voltaria a conseguir assentar-se sobre um selim.

Os pontos vermelhos aproximavam-se rapidamente, o esfíncter velopático contraía-se ainda em mais rapidamente e…

Afinal era só um Coelho pulando na berma do alcatrão e cujos olhos pareciam os do próprio Demo quando a luz do farol dianteiro da Estrela Vermelha neles reflectia, por sorte, ao contrário de seus párias nos quilómetros anteriores, este não se encontrava acometido de nenhum alucinado desejo suicida e sentindo a aproximação velopática, deu de frosques para o mato.

Novamente a sós (nunca esquecendo que quem tem uma Estrela Vermelha nunca está realmente sozinho), o Velopata continuou sua estupid… Aventura, a bom ritmo, até que nos arredores de Ferreira do Alentejo, ocorreu um acontecimento para o qual nenhum Velopata pode estar minimamente preparado .

A não ser que um moçe vá pedalar acompanhado de uma Uzi, M-16, G3 ou lança-mísseis que o valha. Aí sim, estará efectivamente preparado para os acontecimentos que o Velopata seguidamente descreve.

Tudo aconteceu rápidamente (e ainda bem!), durante um conhecido segmento de curta descida cuja paisagem envolvente o Velopata reconhece de outras pedaladas diurnas como sendo composta por vários pomares a perder de vista. A iluminação era exclusivamente providenciada pelo farol dianteiro da Estrela Vermelha, já que iluminação artificial no meio de nenhures é mentira. Que músiquinha tocava no fónezinho direito, o Velopata não se alembra, agora o que ele jamais esquecerá foi aquele som que pareceu preencher toda a noite, este e o outro mundo;

UUUUÓÓÓÓÓÓIIIIIINNNNNNNCCCCCC!

Seria gente ou javali? Gente não era certamente e um javali não grunhe assim.

Se “aquilo” estava em cima do Velopata, ele nunca saberá, mas certo é que os décibeis produzidos pelo urro, uivo ou grunhido da coisa foram de tal ordem que de um só facto o Velopata tinha a certeza – “aquilo” estava ali, em cima de um Velopata, pronto para fazer dele uma refeição fácil.

E puxando de todos os seus instintos Elia Vivianos (é verdade que também podiam ser instintos Caleb Ewianos, Peter Saganianos ou até mesmo Dylan Groenequalquercoisaianos, só não seriam certamente Nacer Bouhannianos pois, nesse caso, o Velopata teria cessado sua pedalada, desmontado da Estrela Vermelha e enfiado uma saraivada de punhada “naquilo”), o Velopata engatou uma mudança mais pesada e sprintou com tudo o que tinha e não tinha, acelerando até bem mais do que a sua FTPmax permitiria.

UUUUÓÓÓÓÓÓIIIIIINNNNNNNCCCCCC!

Mesmo fazendo usufruto de todas as suas (miseráveis) qualidades de sprinter, aquela coisa continuava roncando, grunhindo e uivando em cima do Velopata!

Nova mudança abaixo! Mais cadência do lactato! Mais velocidade!

UUUUÓÓÓÓÓÓIIIIIINNNNNNNCCCCCC!

É hoje! Chegou o dia! Quer-se dizer, a noite! Chegou a noite! Adeus mundo cruel! Será que no Além Velocipédico têm Eurosport?

UUUUÓÓÓÓÓÓIIIIIINNNNNNNCCCCCC!

Já não há mais mudanças! O carreto onze e uma talega cinquenta e dois não são suficientes para suplantar a morte! Adeus! Adeus Estrela Vermelha! Adeus Velopatazinho e Srª Velopata! Ele só espera é não estar consciente enquanto estiver a ser comido vivo!

UUUUÓÓÓÓÓÓIIIIIINNNNNNNCCCCCC!

Mas que maneira de falecer! E ele que nem cadáveres de animais come! Oh, a ironia!

UUUUÓÓÓÓÓÓ.

E assim como o ensurdecedor ronco, uivo ou grunhido havia aparecido… Desaparecia, deixando um Velopata à beira de um fanico de tanta FTPmax do lactato da cadência do mesociclo desenvolvidos naqueles segundos de perseguição que pareceram uma eternidade.

Sem nunca olhar para trás, o Velopata continuou em ritmo acelerado, só sentindo seu pobrezinho esfíncter e almariada pulsação acalmarem quando vislumbrou a placa indicativa que Ferreira do Alentejo era já ali – e na urbe ferreirense de alentejanense certamente encontraria refúgio e segurança.

Mas a questão mantinha-se – o que tinha perseguido o Velopata?

Muitos dos mui cultural-popularmente menos evoluídos leitores não saberão mas, sempre disposto a contribuir como quem contribui mesmo para vosso enriquecimento cultural velocipédico e não só, o Velopata explica – o Alentejo encontra-se entre as regiões deste Terceiro Calhau a contar do Sol que mais lendas têm sobre… Lobisomens.

Como a Lua se encontrava em quarto minguante e não cheia, a explicação só podia ser uma.

O Abominável Compadre-Javali das Hortas e Pomares alentejanos.

De dia, é um nobre e simpático agricultor, compadre amigo de seu amigo, mas em noites de Lua em quarto minguante, transforma-se num voraz predador percorrendo as hortas e pomares das planícies alentejanas em busca de sangue fresco.

E provavelmente batatas e cenouras, para acompanhamento.

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O Abominável Compadre-Javali das Hortas e Pomares alentejanos, aqui desenhado por uma outra testemunha ocular que o Velopata encontrou no Google.

Ainda de pernas tremelicantes devido à Mãe de todos os Reais Cagaços anteriormente experienciados, o Velopata dirigiu-se rapidamente até à segurança dos Bombeiros Voluntários de Ferreira do Alentejo, onde a simpática Bombeira da recepção permitiu ao Velopata acesso ao quarto de dar banho, podendo ele verificar a integridade dos seus bib shorts (sobreviveram imaculados, só podendo tal ser interpretado como um milagre de Nosso Senhor Joaquim Agostinho), para além de repôr preciosa água no seu bidon.

Optando por não referir o seu Encontro Imediato de Metamórfico Grau, o Velopata ainda recorreu à máquina de café dos Bombeiros para recarregar cafeína (para o mui querido leitor compreender bem o almariado estado velopático, ele só queria um café bem cheio e sem açúcar, trocando-se todo com os botões daquela máquina e acabando com uma zurrapa descafeínada), fumou de estalo vários cigarros de tabaco aquecido e aproveitou a conversa com o provavelmente único Bicho Humano acordado em Ferreira do Alentejo, a Bombeira Recepcionista, para acalmar corpo e mente.

O contraste: a gentil calma da Bombeira e o coração a dois mil quilómetros por hora do Velopata.

Agradecimentos e despedidas feitas, o Velopata lançou-se ao alcatrão com o intuito de calcorrear ininterruptamente os cerca de cinquenta quilómetros que faltavam até Montemor-o-Novo.

O plano é sempre simples, certo?

Sem quaisquer percalços dignos de menção, exceptuando um ou outro exaltado ladrar de canídeos que não preocuparam o Velopata pois nunca os chegou a visualizar, nunca esquecendo a ancestral sabedoria popular “olhos que não vêem, esfíncter que não sente”, para além de que começavam a despontar os primeiros raios do nosso astro mais querido e durante o dia, os temores nocturnos perderem muito de seu fulgor, a parvoíc… Aventura seguiu a bom ritmo.

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O amanhecer no Alentejo profundo.

Alcáçovas surgia no horizonte e o Velopata sentia que o rendez-vous com AAA estava cada vez mais próximo, conseguindo até a proeza de cumprir com o horário estabelecido e…

RRRROOOOONNNNNCCCC!

Desta vez não se tratava de nenhum animal, bicharada ou criatura mitológica esfomeada por tripas e entranhas deste vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal. O gutural rugido surgia das profundezas do estômago velopático que roncando desalmadamente, notificava que a não ser corretamente saciado, o empenão faminto chegaria com tudo.

E o Velopata sabia – esta era daquela fome que não ia lá só com barras ou barrinhas energéticas.

Dada a madrugadora hora, as primeiras pedaladas por terras alcáçovienses deixavam um Velopata desaustinado pois todos os tascos encontravam-se fechados.

Até que por entre os olhos semi-cerrados (os raios do nosso astro mais querido já pediam a mudança dos óculos de visão nocturna para os de Sol), o Velopata vislumbrou aquele que ele só podia reconhecer como um oásis pasteleiro.

A Padaria do Ernesto.

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Em Alcáçovas, Estrela Vermelha e Velopata foram salvos pelA Padaria do Ernesto.

Percebendo que A Padaria do Ernesto já se encontrava em pleno funcionamento, o Velopata irrompeu pelas suas portas, ávido de se atirar de cabeça pela montra onde deliciosas iguarias se pavoneavam, só não o fez porque muito provavelmente o Ernesto não ia achar muita piada a ter que substituír todo o vidro da montra.

Decidido a alambazar-se com tudo o que contivesse açúcar e não tivesse sido um animal muitas horas antes, o Velopata banqueteou-se com tanta iguaria açúcarada que hoje, dias volvidos sobre a gastronómica experiência, ele nem se alembra de tudo o que ingeriu, tal a moca açúcarada que o acometeu.

Sabendo restarem ainda uns trinta e cinco quilómetros com cerca de uma hora e meia para os cumprir, o Velopata permitiu-se ainda o fumo de um cigarrito de tabaco aquecido quando, no horizonte, vislumbrou três enlicrados munidos de Bicicletas de Estrada, que seguiam o mesmo rumo que ele (o Velopata), posteriormente seguiria.

Claro que um Velopata não se fez rogado e rapidamente pegou na Estrela Vermelha e lançou-se na perseguição dos Ciclistas alcáçovienenses na esperança que não fossem ressabiados e ele (o Velopata), pudesse ter ali umas preciosas rodas de auxílio à sua parvoí… Epopeia.

E sim, às vezes um Velopata até se acardita que suas Altas Eminências Velocipédicas sentem algum tipo de dó e piedade deste vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal, enviando alguma ajuda divina.

– Então amigo, vem de onde? – questionou um dos Ciclistas.

– Faro.

– Faro? Como assim, Faro? – questionaram incrédulos e em uníssono.

– Faro, no Algarve.

– A´tão mas para estar aqui a estas horas… A que horas saíu de Faro no Algarve? – indagou um que aparentava ser o mais velho do trio, não forçosamente o mais sábio, caso contrário, já se teria deixado desta vida de fome, miséria e sofrimento.

– Ele começou a pedalar ontem, sexta-feira, pelas vinte e duas horas da noite.

– Ele quem? – questionou um outro.

– O Velopata. – explicou o Velopata.

Fez-se silêncio enquanto a ideia cimentava nos cérebros do trio que agora seguia na roda da Estrela Vermelha, pois apesar dos muitos quilómetros já embutidos nos pistons velopáticos, ele (o Velopata), não é moçe de fugir ao trabalho e responsabilidades, passando e alternando também na frente do grupo. Coincidência ou não, o Velopata pode jurar ter ouvido a palavra “pancada” ser proferida por um dos comparsas na sua roda mas lá está… Onde, como ou quem andava à pancada, o Velopata já tinha desistido de tentar perceber.

O contraste: a frescura velocipédica de uns e o quase empenão de outros.

Seria de esperar que sendo a companhia velopática nativa de Alcáçovas, os parcos quilómetros ainda embutidos fariam com que estes trabalhassem mais na frente do quarteto, podendo um Velopata resguardar-se na roda, aproveitando a boleia.

O problema é que mesmo mantendo um ritmo confortável, ao longo das várias rampas que o quarteto enfrentava, o Velopata assistia enquanto a companhia ficava para trás, exceptuando um que dos três que parecia ser o mais fit e rijo e coiso moçe álcaçovenense.

Aguardando como quem aguarda mesmo a chegada dos esbaforidos encarochados para trás, eis que quando o quarteto se reune novamente, ambos os dois exclamam;

– Epá ó amigo, para quem já tem tantos quilómetros em cima, o seu ritmo é muita forte!

– Pois amigo, tenha lá calma! Isto ainda é só a minha terceira vez a andar de biciclete a pedal!

Ouvistas aquelas frases, o Velopata não pode evitar senão sorrir.

“Deve ser isto que o Pro Ressabiado e o Professor Carochas sentem quando encarocham comuns mortais.” – pensou o Velopata para com o fecho éclair do seu colete fluorescente que é da B´Twin que é da Decathlon que é da B´Twin – Uai, e não é que a sensação até é boa?

Rectificação do contraste anterior: o confortável ritmo de um experiente Velopata e o empenante ritmo de maçaricos.

(Nota velopatóide: isto é que vai para aqui uma presunção e água benta…)

Percebendo que manter uma pedalada a ritmos aceitáveis pelos membros da troupe atrasaria consideravelmente o Velopata, o moçe que o conseguia acompanhar nas rampinhas rematou;

– Olhe amigo, desejo-lhe a maior das sortes na sua aventura mas é mesmo melhor ir andando senão vai chegar atrasado a Montemor. Apesar de não ter aí mais nenhuma subida por aí além, se vai no nosso ritmo prega uma valente seca ao seu colega.

E assim foi – o Velopata agradeceu por aquela refrescante e motivante companhia e seguiu seu caminho.

Agora o que o Velopata gostava mesmo de saber é o que será uma subida por aí além para aquele rijo moçe alcáçoviense

Logo após deixar Escoural para trás, uma imponente parede ergueu-se, acompanhada de um fresco “ventinho” frontal nortenho que levaram um Velopata a quase atingir os limites da sua capacidade anaeróbia do mesociclo do lactato ou lá o que é.

Que parede, mui queridos leitores, que parede!

Sentindo que a qualquer momento um pulmão tentaria escapulir-se pelos cantos da bonita boca velopática em busca de precioso oxigénio, o Velopata conseguiu suplantar aquela marafada parede, assim chegando ao longo segmento strávico rolante que o levou até Montemor-o-Novo, onde AAA aguardava sempre com aquele simpático sorriso e uma envergadura de asa para dar um daqueles abraços que os companheiros de pedalada e bons amigos dão.

E com duzentos e vinte quilómetros cumpridos em onze horas, vinte e seis minutos e vinte e dois segundos, o Velopata sobrevivia à pedalada nocturna e o rendez-vous com AAA estava feito.

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Velopata (à esquerda), e Agente da Autoridade Anónimo (à direita), ainda sorriem, desconhecendo o que o destino lhes aguardava.

Seguiram-se momentos descontraídos enquanto um Velopata carregava de combustível proteico, açúcarado, cafeínado e nicotinado, para além de ambos os dois contarem suas peripécias em como haviam sobrevivido até ali.

A jornada inicial de AAA decorreu sem quaisquer percalços dignos de menção, já o Velopata tratou de sucintamente contar todos os tenebrosos encontros que a viagem lhe proporcionou e que o mui querido leitor, chegando a estas linhas, já sabe.

– É natural que tenhas mais histórias para contar que eu. – afirmou AAA.

– Uai, como assim?

– Então, passas a vida a enaltecer a Estrela Vermelha… É óbvio que por entre todos os teus milhares de milhões de seguidores, alguns vão fazer o esforço de querer ver passar a Estrela Vermelha em mais uma aventura. Nem que seja de madrugada, no meio de lado nenhum.

– Achais mesmo? – questionou o Velopata.

– Não tenho dúvidas, olha eu por exemplo. A única razão pela qual eu me meto nestas parvoíces contigo é porque um dia poderei contar aos meus netos que tive o prazer de pedalar bem pertinho da Estrela Vermelha.

Mas como o mui querido leitor verá, não será apenas o facto de ter acompanhado a Estrela Vermelha em mais uma aventura, o registo que AAA terá para contar aos seus netos.

Ambos os dois desconheciam mas… A aventura só agora estava prestes a dar suas primeiras pedaladas.

 

PS velopatóide: muitos dos mui queridos leitores questionarão a ausência de um relato sobre a passagem pelo famigerado pavê do Torrão, mas tal deve-se ao facto de, à semelhança das vítimas de stress pós-traumático, o cérebro velopático eliminar da sua mente as memórias das experiências por demais traumatizantes.

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

2 comentários sobre “Uma Escapadela Altimétrica – parte I

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