O Cunhado do Ricardo

Se não está no Strava, então é porque não aconteceu.

Hipocrates in Da Medicina Antiga

Esta é uma ancestral frase de sabedoria filosófica que alevanta um paradoxo no contínuo espaço-tempo velopático; quereis partilhar um mágico momento strávico com amigos e pessoas especiais mas restam apenas apontamentos fotográficos e vídeos. Mas essas mesmas pessoas especiais sabem o que foi feito, de um modo indirecto participantes até, razões não faltando quando delas depende a própria experiência.

(Nota do autor: isto mais não é que um Velopata a engraxar forte e feio a Srª Velopata e a Cunhada Velopática por terem permitid… Autorizad… Aceite que eles, Velopata e Cunhado Velopata, desaparecessem do conforto dos lares durante 1 noite.)

Ainda para mais quando toda a experiência foi ILEGAL. Assim mesmo, ILEGAL, com direito a todas as letras maiúsculas.

Senão vejamos; 6 machos com número de primaveras propícia a crises de meia-idade, estabelecem acampamento selvagem de 1 noite em regime de Nada Incluído, pandemia cóvidiana ao rubro e durante um fim de semana com proibição de circulação entre concelhos. Fogueira incluída e tudo.

Não obstante o ajuntamento de um número de bichos humanos não provenientes do mesmo agregado familiar estar em desacordo com as normas vigentes, existia ainda toda a viagem – este vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal reside em Faro, o Cunhado Velopata (responsável pelo transporte velopático enlatado), habita em Olhão e o local de rendez-vous seria algures nos nenhures de Benafim, próximo da Ribeira de Algibre.

Portantos, só para chegar ao local, 3 concelhos seriam atravessados.

O problema das Autoridades?

Toda essa extensão de quilómetros é quintal do espécime Velopata.

“Eles” não conseguem estar em todo o lado a todo o tempo e conhecendo o Velopata a maioria das rotas e traques por onde fintar as Autoridades, pelas 16:30 da tarde do dia 5 de Dezembro do ano de Nosso Senhor Joaquim Agostinho de 2020, Velopata e Cunhado Velopata chegaram ao rendez-vous.

Não pretendendo atribuir uma ordem de importância a cada um dos intervenientes, destacava-se a presença de Deni Vargues, distinguido membro da elite strávica que é a Divisão Velopata, inclusivé tendo já levado o bom nome desta ao topo dos Everestes Verdadeiros e não daqueles de desafios épic… Parvos da Internet.

As tradicionais apresentações; o Velopata conheceu O Dentista Louco e seu canídeo Jackson, O Chef e O Caçador que Ofereceu um Coelho de Estimação à Filha.

Vista panorâmica do local onde algumas das inúmeras ilegalidades foram cometidas.
Vista geral do acampamento prevaricador.

Vamos lá ver uma coisa; isto não é malta de Médias, Cadências ou Anaerobioses de Lactato.

No entanto, muita coisa apresentam em comum com Ciclistas; cedo o Velopata percebeu a preocupação destes com o peso do material não obstante aquele pedaço de pança pândega aqui e ali.

Ser antisocial parecia tarefa simples – o Velopata seguiu para o isolamento de encontrar seu espaço para assentar arraiais mas rapidamente o demoveram a troco de um presente de boas vindas – um prazeroso copito de “Mel”.

O leitor menos versado em terminologia técnico-táctica pode estranhar “Mel” entre aspas mas tal deve-se ao facto de o Velopata saber já que Mel, daquele bom produzido pelas abelhinhas, é o que não se encontrava no interior daquele frasquinho.

Era sim um “Mel” bom, capaz de derreter almas e aquecer corações.

Nota: álcool depois das 20 horas. As ilegalidades teriam um fim?

O estaminé velopático, tenda cujo último vislumbre solar deve ter ocorrido ainda o carbono não tinha sido descoberto.

“Onde é que isto vai parar?” – matuta como quem matuta mesmo o Velopata para com o fecho éclair de sua jaqueta Forclaz Air GoreTex Shell Flash Rain Stopper. Nisso e nas luvas – como se não bastasse toda a ilegalidade, um desafio pairava sobre todos os intervenientes – sobreviver à primeira noite mais fri… Gelad… Um frio do c#%%ho do ano.

O “Mel” voltou a rodar para aquecer corpos cansados da montagem dos lares instantâneos e foi então que o Velopata ouvistou algo que tão cedo não esquecerá;

“Toma aí Cunhado do Ricardo.” – disse a voz.

Quem seria o Cunhado do Ricardo?

Teria alguém chegado e o Velopata não ouvisto, ocupado que estava decifrando por onde contribuir para o corte de lenha?

A evidência abateu-se sobre o Velopata como um soco no estômago – alguém estendia o Serrote de Madeira na sua direcção – ele (o Velopata), era o Cunhado do Ricardo.

O Cunhado do Ricardo.

Tal como desde os primórdios desta espécie de primata com menos pêlo, 6 cansados guerreiros assentaram-se à volta de uma fogueira com a Natureza como único testemunho. A diferença para essas longínquas eras é que se trocaram peles de animais por Casacos Polar GoreTex Full Carbon e o vinho vem em pacotes.

Reiterando, já passava bastante das 20 horas.

A mui adorada fogueira.

Eles não têm FTPmax, watts por quilograma ou Aerobioses de Lactato.

Têm sim boa disposição e companheirismo em monte, humor daquele seguro para a internet, humor daquele que se o Cunhado do Ricardo ousasse aqui escrever o que foi proferido, amanhã todos teriam à porta a Segurança Social, o SIS, um punhado de Ofendidos da Internet de forquilhas na mão e a CMTV.

Essa era outra; no meio de tudo aquilo, o Cunhado do Ricardo temia transformar-se numa manchete da CMTV ao estilo “Homens detidos por festa ilegal na Ribeira de Algibre” ou pior. Muito pior, como já vereis.

A medo, o Cunhado do Ricardo temia que algures alguém pronunciasse coisas como Supremacia da Adriana ou lá o que é, Orgulho Branco (ou do arco-íris que isto hoje em dia nunca se sabe), reverência à arte de resolver conflitos com metralhadoras, mísseis e tanques (seriam afanados do Exército, portantos), ou uma e outra tentativa de o convencer a adoptar uma religão onde se utilizam chapéus feitos em papel de alumínio.

Mas não, longe disso. Salvo a ocasional piada sobre eurodeputados húngaros da extrema-direita, afinal, recorrendo a matemática báscia, encontravam-se ali 6 machos sozinhos e apenas 4 tendas montadas…

Sabeis o que também não havia?

Cóvides.

O vinho em pacote rodou, a fogueira vacilou e a lenha escasseou – o sexteto organizou-se nas tarefas e o Cunhado do Ricardo pode vivenciar de perto os dotes dos… Bushcrafters.

Artistas do Mato, em português.

Não se utiliza lenha de árvores saudáveis, aproveitando-se o que a Natureza tem para oferecer, deixando zero pegada para trás. São muitos os ensinamentos que o Velopata pode dali retirar para adaptar a suas aventuras. Isso e também que existe bom vinho de pacote.

Reunidos à volta da fogueira, não por um qualquer apelo ancestral mas porque longe das chamas não estava chuva nem orvalho, apenas UM FRIO QUE NÃO ALEMBRAVA AO CA#$%HO MAIS VELHO!, o Cunhado do Ricardo assiste então ao culminar das celebrações bushcraftenses – pilha após pilha, pedaços de cadáver de múltiplos animais são colocados em grelhas e frigideiras de todos os formatos, feitios e finalidades. O Dentista Louco e seu companheiro Jackson parecem particularmente fãs desta secção das Artes do Mato, não obstante o facto de ter sido justamente este comportamento que traíu a espécie de Jackson, levando-os de um feroz Lobo até um Caniche. E daqueles com tutus côr de rosa e tudo.

Cunhado do Ricardo prevenido vale por 2 e expectando que artistas de mato não só aprovassem como contribuissem para aqueles frenesins bárbaros de alimentação primitiva, levou suas marmitas e tamparoéres carregado de suas goluseimas Barbaridade Free.

Chegava a vez dos acompanhamentos; alguém sugeriu ferver um pouco de água para arroz quando o Cunhado do Ricardo ouvistou

“Espera, não uses essa água do Luso que tenho aqui Água da Chuva. Á-G-U-A D-A C-H-U-V-A.”

Aquilo foi néctar para os ouvidos dos artistas do mato que irromperam em celebração.

Queriam Água da Chuva para Beber, para Comer e sabe-se lá mais o quê.

O Cunhado do Ricardo lembrou que se fazia acompanhar da água de um garrafão de marca registada e tudo.

Mas água da Chuva é que “é a cena”.

Enquanto Dentista Louco e Jackson continuam seu manjar bárbaro, o Chef prepara batata-doce, cenoura, cebola e uns espargos apanhados na caminhada da tarde para o interior de uma frigideira, o Caçador que Ofereceu um Coelho de Estimação à Filha entretem-se com uma das muitas nem-consegui-contar facas em sua cintura e dá largas à imaginação de suas mãos. Deni continua a construção de um abrigo em cana e todos mostram porque são uma boa equipa de Artistas do Mato.

Já o Cunhado do Ricardo, com o nato jeito que tem para trabalhos manuais, limitou-se a degustar o vinho de pacote, de vez em quando contribuindo para manter a fogueira.

Por onde quer que passe, não existe canavial capaz de resistir a Deni Vargues.
O Caçador que Ofereceu um Coelho à Filha produziu, a partir de umas sobras de cana, este bonito Cartaxo, utensílio musical que os Artistas do Mato utilizam para chamar qualquer pássaro que o Cunhado do Ricardo não percebeu o nome (talvez um Piu vulgaris).
Também o Chef mostrou seus dotes bushcraftianos, produzindo uma bela árvore de Yule (o mui querido leitor reconhecerá como Natal), lembrando o acampamento da época festiva que se respira.

Eles não têm Mesociclos, Endurance Aeróbia ou Zonas Zcoiso.

Mas têm facas. Serras. Machados. E mais facas. E facas daquelas que já desconfiamos se aquilo não entra na categoria de Espada Bastarda, necessitando todo o FTPmax de ambos os dois braços para ser brandida.

O Cunhado do Ricardo investigou sobre a identidade da App onde os Artistas do Mato registam suas actividades e coiso, mas falhou em descobrir apesar de reter alguns dos parâmetros que aparentam contabilizar;

TSmax – Temperatura Sobrevivida – é a temperatura mais baixa experienciada durante a sessão de acampamento. Pelo menos, vários membros da troupe passaram boa parte do tempo deslocando-se da fogueira até um gelado e escuro buraco no tronco de uma árvore onde mantinham um termómetro, tudo indicando ser um dos sensores do Garmin da coisa. No caso aqui experienciado tudo indica que muitos dos presentes não obtiveram um Personal Record à boa maneira strávica, mas para este vosso companheiro, palhaç… Cunhado do Ricardo, estava UM FRIO DO CA$%&HO! A barreira dos 0 ºC foi batida algures durante a madrugada mas não houve celebração. Culpa do vinho de pacote, diz-se.

FQmax – Fogueira Quente – parece ser o registo da fogueira na sua maior intensidade. O Cunhado do Ricardo não conseguiu perceber que sensor do Garmin da coisa é utilizado.

Sem um aparente fim à quantidade de pedaços de várias espécies de cadáveres animais lançados sobre as brasas, o Dentista Louco continuava seu desfilar de barbárie na grelha com todos seus movimentos vigiados por Jackson. Chef colocava o panelão cheio de vegetais bons nas brasas, estragando tudo quando lhe adiccionou pedaços fumados de tripas de cadáver suíno. As mãos de O Caçador que Ofereceu um Coelho de Estimação à Filha produziam maravilhosas peças de arte em cana e madeira enquanto contava sobre seus planos de extermínio secreto daquele Coelho filho de uma grande… Vá, Coelha.

Gargalhada geral.

O café produzido com água da chuva não matou o Cunhado do Ricardo, não obstante a obstipação (neste caso, o Cunhado do Ricardo não se refere à habitual mental), que prevaleceu durante uns dias – talvez o cheiro de tanto cadáver queimado tenha revirado os intestinos.

– UM VÍRGULA NOVE GRAUS!

Alguém brada a plenos pulmões que se atingiu a temperatura mais baixa até então. Festeja-se com brindes e a fogueira continua a aquecer histórias e gargalhadas que se trocam.

Por esta fase, decerto o mui querido leitor anseia por saber mais do que foi esta memorável noite, no entanto, e como o Cunhado do Ricardo percebeu;

O que acontece na Ribeira de Algibre, fica na Ribeira de Algibre.

Um a um, os intervenientes recolhem a seus abrigos até que apenas o Cunhado do Ricardo e o próprio Ricardo restam, aguardando as últimas brasas sucumbirem ante o frio que tudo cobre com seu gelado manto.

Escassas horas depois, o Cunhado do Ricardo é acordado em sua tenda ao som dos acordes de Algures Atrás do Arco-Íris (Somewhere Over the Rainbow, em anglosaxocamónico), soltos de um Ukelele. Por entre as ramelas e uma cabeça pesada de tanto vinho de pacote, o Cunhado do Ricardo espreita para o exterior de seu abrigo para encontrar uma FRIA COMÓ CA$#%HO madrugada e os bushcrafters a… Bem, a bushcrafting.

Enquanto Deni retoma a labuta da construção de um abrigo de canas, o Dentista Louco e Jackson entregam-se novamente às festividades de lançar vários pedaços de cadáver animal sobre a fogueira (o Cunhado do Ricardo desconhecia ser possível transportar num pequeno saco térmico tanta quantidade de cadáver animal!), que Chef e O Caçador que Ofereceu um Coelho à Filha reacendem. Só Ricardo continua dormindo, numa espécie de variante arqueológica de múmia do mato.

A Múmia de Algibre.

Pequeno-almoço tomado e os intervenientes decidem visitar um sítio que Deni conhecia ser possível atravessar a Ribeira de Algibre através de cabos suspensos.

Dificilmente a lente do telefone esperto do Cunhado do Ricardo consegue captar toda a beleza da Ribeira de Algibre.
´Tá o Cogumelo em monte!
Um eficaz forno de pedra que desconhecidos construíram, embeleza o trilho.
Trilhos de uma beleza inigualável.

Só que chegou o momento em que a manete torceu o cabo.

O Caçador que Ofereceu um Coelho à Filha confirmou que o local distaria apenas 1 mísero quilómetro de onde o acampamento selvagem se localizava – quase 1 hora depois de caminhar por entre veredas marcadas pela presença de javalis em monte, nem sinal dos tais cabos.

O problema?

O Cunhado do Ricardo não gravava stravicamente a coisa, impondo-se assim a questão;

A caminhada aconteceu ou não?

Em caso de resposta negativa, ele (o Cunhado do Ricardo), então quer fazê-la e repetindo a companhia, talvez aumentando a troupe apenas com o Velopatazin… O Sobrinho do Ricardo.

Se a resposta é positiva… Então que venham mais noites e dias como este.

E para o mui querido leitor s´acarditar que não foi apenas o Cunhado do Ricardo a adorar toda a experiência, ficai com a selfie que Jackson pediu para tirar com toda a troupe.

Da esquerda para a direita; O Cunhado do Ricardo, Deni Vargues, Dentista Louco, O Caçador que Ofereceu um Coelho à Filha, Cunhado Velopata e Jackson.

PS do Cunhado do Ricardo: um grande MUITO OBRIGADO aos intervenientes. Proporcionaram uma noite que o Cunhado do Ricardo não esquecerá mas… Ele (o Cunhado do Ricardo), não pode senão alevantar uma questão – para quando a próxima?

Abraços (com máscara e à segura distância higiénica) velocipédicos,

Velopata

Deixe um comentário