Rolos velopáticos

O Velopata chega hoje até vós com um texto sobre o momento da vida velocipédica em que o ciclista decide não mais sair pedalando pela estrada, repudiando a luz solar, a síntetização de Vitamina D, a absorção de Iodo, os aromas e fragâncias da terra, que na época da estrumagem dos campos agrícolas e aquando da presença de cadáveres de animais na estrada são uma delícia, as paisagens de cortar a respiração e aquele maravilhoso som dos pineus a deslizar pelo alcatrão.

Rolos.

O Velopata escreve sobre os rolos de treino.

Corria o ano de Sua Santidade Agostinho de 2014 quando o Velopata deu por si à beira do precipício e, tal como o Mister da bola Jaime Pacheco, um passo foi dado em frente com uma tremenda determinação. É que nessa distante época, vários fins de semana tinham sido perdidos em frente à janela do lar velopático, observando marafado enquanto o temporal lá fora arruinava quaisquer esperanças de uma agradável pedalada. Motivado por tal, e porque o Velopata é portuga e não belga, ele seguiu até à loja da especialidade mais próxima e aproveitando as promoções, adquiriu uns rolos de treino.

tacxbooster
A máquina de tortura semelhante à que o Velopata utiliza. A principal diferença para esta foto é a perna velopática que é bem mais bonita e delineada e a bicla que é o querido Cangalho, primeira companheira de aventuras velopáticas. Até porque o Velopata jamais colocaria a Estrela Vermelha em semelhante constrangimento pois dizem por aí que a força aplicada sobre a bina estática durante uma sessão de mutilação faz mal ao carbono.

Para o leitor civil as palavras “rolo de treino” não farão muito sentido. Sempre disposto a contribuir, o Velopata explica. Um rolo de treino não é mais que uma máquina de tendências sado-masoquistas onde a bicicleta é encaixada num suporte, permitindo ao ciclista pedalar e auto-mutilar-se sem sair de de onde se encontra, podendo simular todas as situações que ocorrem na estrada, inclusivé a transformação das pernas em polpa, através do recurso a várias intensidades de um travão que é aplicado sobre a roda traseira.

A evolução internética usb-ética permitiu o desenvolvimento de rolos de treino de todas as formas e feitios, existindo actualmente rolos que se podem ligar a computadores, conectados a aplicações onde a pedalada de treino se transmorfa numa espécie de jogo de computador, permitindo ao atleta competir em tempo real, com base na sua representação em bonequinho num ecrã, com outros bonequinhos correspondentes a outros masoquistas espalhados pelo mundo. Como o Velopata é teso (termo utilizado sem conotações sexuais), a única interação que o rolo de treino que ele adquiriu permite é… Com as paredes brancas do quarto anteriormente reconhecido pela Srª Velopata como “o quarto das coisas das bicicletas”.

Apesar de tudo, parece giro, não é?

É horrível.

E por várias razões;

– Como o cunhado velopático bem apontou, o som que a máquina de auto-flagelação produz lembra um avião Jumbo a alevantar vôo. Curiosamente nenhum vizinho velopático apresentou queixa ou apareceu à porta do lar velopático de caçadeira em riste, o que o Velopata só pode interpretar de dois modos; ou a vizinhança é môca, ou nos entretantos ficou môca. Há ainda uma terceira e quiça mais lógica hipótese; os vizinhos velopáticos acreditam que o Velopata tem a mania das limpezas e quase diariamente aspira o chão do seu lar.

– O súor que se liberta é tal que, aquando da primeira visita que a Srª Velopata fez ao Velopata durante a sua sessão de tortura auto-infligida, ela ia jurar que o Furacão Harvey tinha ocorrido ali em sua casa. Quanto à fragância que paira na atmosfera após um treino… Digamos que a Srª Velopata desitiu da ideia de ter plantas nessa divisão do lar velopático após assistir ao definhar e murchar destas após cada sessão de mutilação velopática.

– Pedalar sem saír do sítio. E isto soa só a… Estúpido.

Mas não se deixe enganar ou até mesmo desmotivar, mais-que-tudo leitor. Os rolos de treino podem e serem um verdadeiro aliado no que toca à obtenção de uma boa forma velocipédica, desde que utilizados com moderação, podendo mesmo escrever-se que uma sessão de rolos de treino se assemelha a uma sessão de copofonia pelos meandros da noite farense; inúmeras vezes o Velopata termina a sua sessão com o cérebro a navegar e o simples acto de andar erecto e em linha recta comprometido.

A conselho do Rei do Barranco, o Velopata navegou pela página internética da Tacxcoiso, marca de referência nestas máquinas de tortura já desde os tempos da Inquisição, tendo encontrado inúmeros treinos preparados pelos especialistas colaboradores da referida empresa.

3 anos depois de muitas sessões de sangue, súor, lágrimas, baba, ranho, gemidos e uivos de dor auto-infligida, o Velopata pode agora partilhar com a restante maralha, os segredos e truques para se rentabilizar ao máximo as sessões de rolos de treino que muitos de vós que acompanham o Strava velopático já conhecerão.

Regra geral, o Velopata pratica 3 sessões de flagelação tibial semanais, tentando não exceder 1 hora e 30 minutos de duração em cada uma. Sessões de 3 e 4 horas de duração, para além de serem apelidadas de demência e loucura por parte dos amigos velopáticos, estão reservadas para aqueles fins de semana invernais em que o São Pedro não colabora e há que matar o vício e não parar.

As 3 sessões de puro masoquismo e sadismo semanais podem ser divididas em 3 categorias não tão distintas, pois aquilo é pouco mais que diferentes modos de sofrer; numa sofre-se mais, noutra sofre-se ainda mais mas, grosso modo, os treinos de rolos velopáticos assentam nas seguintes sessões;

– Endurance Aeróbia

– Força/Potência ou Subida

– Intervalos

Endurance Aeróbia

Este é o treino que permite ao atleta melhorar a sua velocidade de cruzeiro, ou seja, pedalar em plano a uma boa velocidade, sem ter a notória sensação que se vai morrer. Consiste em vários segmentos onde se pedala no limiar dos 60 a 80% da Frequência Cardíaca Máxima, intercalados com momentos de descanso.

Muitos saberão que o Velopata dispensa o monitor de Frequência Cardíaca durante o acto da pedalada. Como saber então que está a realizar corretamente um treino de Endurance Aeróbia, no qual a pulsação se deve manter sempre abaixo dos 60-80% da Frequência Cardíaca Velopática Máxima?

Fácil.

Se o Velopata consegue libertar pequenas frases, em diálogo com as paredes brancas da sua sala de tortura, então é porque está a fazer o treino corretamente.

Dos três tipos de treinos aqui apresentados este é o menos difícil para as pernas, mas mais pesado para o cérebro. Traduz-se em longos minutos a pedalar sem ter aquela sensação de pré-fanico e sim a sensação que se está a moer, a moer, depois mói-se mais um bocadinho, como quem mói mesmo. Atletas há cujos treinos de Endurance Aeróbia são acompanhados por música ou mesmo o visionamento de filmes e séries, de modo a combater o tédio e infelizmente isso o Velopata não consegue pois retira-lhe a atenção e quando ele dá por isso, está a pedalar fraquinho, fraquinho. Daí os diálogos com as paredes brancas.

Força/Potência ou Subida

Também conhecido pelo Velopata como o treino da polpa. Que é no que as pernas velopáticas se assemelham, finda a sessão.

Como o próprio nome indica, consiste num treino onde em vários segmentos se aplica uma desaustinante força no travão sobre a roda traseira, mantendo uma marafada e pesada mudança na bina, traduzindo-se numa baixa cadência de pedalada de modo a obrigar toda a musculatura das pernas, mas também da bexiga e do esfíncter, a trabalhar; com tanta força aplicada sobre o corpo velopático é difícil não soltar umas pinguinhas de urina e alguns gases, o que é só uma nojeira e não abona em nada à fragância atmosférica finalizada a sessão.

E se o querido leitor pensa que isso não é bem a mesma coisa que treinar uma subida, acredite que várias sessões ocorreram onde o Velopata tinha a notória e agonizante sensação que estava a subir ao mítico Alto do Malhão.

Montado numa Yé-Yé do século passado, daquelas que pesam uns simpáticos 15 quilogramas e dotada de uma única mudança.

Intervalos

Não existem muitas palavras que inspirem tanto horror e medo na alma de um ciclista como as palavras “queda”, “problema mecânico”, “carbono estralhaçado” ou “treino de intervalos”.

Só de pensar e escrever sobre isto, o querido leitor acredite que o Velopata tem já uma lágrima à Bonga. Ou seja, no canto do olho.

O treino de intervalos pode ser resumido numa breve linha; realizar segmentos de 30 segundos a 1 minuto onde se dá tudo, intercalados com os mesmos 30 segundos a 1 minuto mas de descanso. E se o mais-que-tudo-leitor acredita que estas medidas de tempo são curtas, então é porque nunca experimentou a horrível e dura realidade de um intervalo velocipédico.

Após uma ponderada análise, o Velopata acredita que todas as sessões de flagelação intervalada podem ser divididas em 5 fases distintas, tendo por base o estado psicológico do atleta;

1 – Nervoso Miudinho; o atleta sabe que tem pela frente um duro treino de intervalos e já súa em antecipação ao sofrimento auto-infligido que tem pela frente. A medo senta-se no seu selim e inicia a fase do aquecimento tibial.

2 – Presunção e Água Benta; durante o aquecimento para ativar a musculatura dos pistons velocipédicos, o atleta sente a confiança aumentar, sente-se forte e capaz, não há intervalo que lhe incuta medo na alma.

3 – Muita Forte, é o momento que ocorre logo após os primeiros intervalos se terem realizado. A confiança do atleta atinge um pico máximo pois, afinal de contas, aquilo não parece assim tão difícil. Se há coisa que muitos ciclistas possuem é memória curta além de que o cérebro utiliza truques para eliminar momentos traumatizantes da memória, sendo assim provável que o atleta não tenha memória da agonizante tortura suportada durante anteriores sessões.

4 – Vou morrer; o atleta sente que os seus olhos vão saltar das órbitas, as pernas vão explodir e o seu coração vai saltar projectado do peito qual alien marafado. Em vão, o pulmão assola à ponta da boca para tentar obter precioso oxigénio. É quando os verdadeiros e poderosos intervalos se iniciam que as memórias traumatizantes do passado regressam à mente do atleta. Há dor, dúvida, dor, questões velocipédicas existenciais, mais dor, baba, ranho e ainda mais dor, enquanto o atleta sente a sua energia vital ser sugada por aquela miserável máquina.

5 – O que é que estou aqui a fazer?; já de rastos, o corpo moribundo deitado sobre a bicicleta, a morte cerebral quase instalada pela falta de oxigénio pois este foi desviado para os músculos das pernas e pedalando a miseráveis cadências com o travão no mínimo e as mudanças o mais leves possíveis, o atleta sente-se num lento colapso, só os cleats que o prendem aos pedais o impedem de cair para o lado. Surge então a filosófica questão “O que é que estou aqui a fazer? Eu nem sou pago para isto, não sou profissional… Intervalos nunca mais.”. E novamente a metáfora do alcóol; quando se acorda com uma ressaca daquelas, após duras noites copofónicas, quem pode afirmar que nunca jurou nunca mais buber até atingir aquele estado?

Finda a sessão, com vontade de vender tudo e deixar-se desta dura vida velocipédica, o Velopata lança-se na banheira onde um reconfortante banho, que não só limpa o bonito e escanzelado corpo velopático, como também a alma, eliminando da mente pensamentos conspurcadores de desistência. E lá volta o cérebro a eliminar da mente a traumatizante hora que passou.

Comendo que nem um alarve ao jantar, regra geral, chegadas as 23 horas da noite e já o Velopata faz uma nova sessão de rolos mas, desta vez, é esponjado no grandioso sofá da sala velopática, sendo sempre lembrado pela Srª Velopata que o maravilhoso som que ele produz enquanto dorme a lembra… O som dos rolos. Esta é uma outra mais valia que os brilhantes senhores criadores destas máquinas de tortura deviam utilizar como slogan; não há insónia que resista após uma boa sessão de sofrimento e miséria velocipédica como a que os rolos de treino nos proporcionam.

Como nota final resta ao Velopata partilhar com a restante troupe as 4 dicas importantes para maximizar ao máximo estas sessões de tortura velocipédica auto-infligida;

1- Ventoinha, acessório mais que importante pois deve ser a única vez na vida velocipédica em que um ciclista gosta de sentir o vento fresco chapar-lhe de frente na face.

2- Água com fartura. O nível de líquidos que se perde é tal que o Velopata chega a consumir 2 bidons de água numa simples sessão de 1 hora.

3- A bela da toalhinha turca. Serve para ir limpando o súor da face e corpo, caso contrário arriscam-se a terminar a sessão que nem um estufado salteado. Então quando o súor começa lentamente a escorrer sobre os olhos… Ui.

4- Dar ao serrote em antes da sessão. Ter uma quebra glicémica durante um treino de rolos é a verdadeira morte do artista. Certa vez este cromo deste vosso amigo, acometido da ideia de perder ainda mais peso antes da sua participação no Granfondue Serra da Estrela, decidiu lançar-se numa sessão de flagelação já com o estômago a dar aquele sinal de moinha. Claro está que com todo o sofrimento e força produzida ia acabando por desfalecer após quase vomitar as tripas.

Sumarizando esta já longa publicação, fica apenas uma questão;

Como não gostar disto?

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

Um comentário sobre “Rolos velopáticos

  1. Pingback: Divisão Velopata – Pedale por onde pedalar, a carocha há-de vir no São João – Blog do Velopata

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