“É já alêm.”
A.A. informando a distância que falta percorrer até determinado ponto.
(A.A. significa Alentejano Anónimo)
“Eu sou um gajo optimista.” – afirmava o Falso Lento enquanto bebericava uma chávena de café na primeira paragem do dia em Cortelha, ainda nem 30 quilómetros realizados dos 430 planeados.
“Tu vais além do optimismo.” – rematou o Velopata.
“Como assim?”.
“Nas voltas de duzentos quilómetros que fazes com ele terminas sempre arrastando-te pelo alcatrão. Desafiá-lo para fazer seiscentos quilómetros de estalo não é optimismo. É pura loucura. Ou demência. Ou ambas as duas.”
“E então? Gosto de testar os meus limites!”
“Não lhe parece que estejas a testar os teus limites. O que estás a testar é a paciência do Velopata que acaba por ficar sempre à tua espera.”
“Queres que volte para trás e vais sozinho?”
“Claro que não! Até porque é sempre mais fixe ter companhia para estas aventuras e ele até simpatiza contigo. Só há uma questão.”
“Já sei… Não me devo meter com aquelas arrancadas muita fortes, devo comer e beber regularmente e acima de tudo manter um ritmo confortável, certo?”
“Não, o que ele ia dizer é que preferia que fosses uma gaija boa mas enfim…”
O plano era o habitual e como sempre, simples. Seguir pela mítica N2 até Ervidel onde se desviava para Beja, uma vez lá, percorrer-se-ia a circular até encontrar a saída para Selmes, daí seguir-se-ia até ao Pedrogão onde posteriormente se iniciaria o circuito do Alqueva, voltando por Moura para regressar ao Pedrogão e daí repetir o caminho no sentido oposto para regressar ao comforto do lar.
Encharcados em café, o dueto fez-se à estrada.
Chegavam as primeras rampitas da Serra do Caldeirão, óptimas para testar não só as lindas e definidas pernas do Velopata como também o estado actual da condição física do Falso Lento, convencido dias antes a ficar-se pela barreira dos 400 quilómetros e não a megalomanosidade que seriam os 600. Ainda assim seria a maior distância percorrida pelo Falso Lento na sua montada “La Cabra”, nem que fosse necessário ao Velopata estender uma corda para o rebocar.
Terá sido o límpido ar da serra, a bela paisagem e o tímido sol que mostrava os seus primeiros raios entre os montes algarvios, ou até mesmo a ausência de enlatados e o ritmo confortável a que se seguia, que levou o Velopata a partilhar;
“Temos sorte e está um excelente dia! Mesmo bom para uma volta destas a festejar o dia da liberdade!”
“O QUÊ?” – gritou o Falso Lento.
Estava o caldo, sopa e tacho entornados.
Parece que o Falso Lento não partilha da mesma opinião político-coiso do Velopata em relação ao 25 de Abril Sempre!, e não querendo gastar o precioso tempo dos mui queridos leitores a explicar o que foi discutido, pois já dizia a grande Doutora Rute Remédios; as opiniões são como as vaginas, quem as quer dar, dá, o Velopata deixa para a posteridade somente os 2 berros que terminaram a discussão, justamente a tempo de se iniciar a descida do Ameixial;
“Cala-te seu facho facínora devorador de animais!” – disparou o Velopata.
“Deve ser, meu comuna anarco-sindicalista armado em intelectual de esquerda vegetariano!” – ripostou o Falso Lento.
Como o leitor decerto interpretará, isto é amizade pura.
Seguiu-se a bom ritmo e amena cavaqueira até ao momento em que o Velopata não aguentava mais;
“Olha, agora quando chegarmos ao Duodeno é melhor parar.”
“Onde? No Dogueno?”
“Sim, no Duodeno.”
“Mas ainda nem há 20 quilómetros atrás parámos!”
“Ele sabe, mas não dá mais. Tem xixi.”
Com as montadas estacionadas à porta do tasco o Falso Lento aproveitou para pedir 2 cafés enquanto o Velopata reduzia o seu nível hídrico. Tendo-se despachado primeiro, o Velopata regressou ao exterior para monitorizar o descanso da Estrela Vermelha e La Crabra, sendo surpreendido por 2 nativos de idade avançada que observavam as beldades de carbono ali estacionadas a tão matinal hora.
“A´tão onde é que é a voltinha hoje?” – questionou o ancião que aparentava ser mais novo.
“A malta vai até ao Alqueva.”
“Alqueva? Mas isso são mais de 200 quilómetros!”
“200 só para ir amigo. Depois tem de se regressar!”
O cérebro do ancião duodense pareceu ser atingido por um bug enquanto raciocinava a matemática.
“Mas isso são mais de 400 quilómetros!” – rematou alguns minutos depois.
“A malta gosta destas maluquices.” – tentou o Velopata justificar.
“Eu quando era mais novo calcorreava essa serra toda de bicicleta. Cheguei mesmo a encomendar uns carretos da França que me custaram mais de 70 mérreis” – interrompeu o outro duodenoense que era mais ancião.
“Pois, é o problema deste desporto. Para comprar material leve a carteira fica ainda mais leve.”
Seguindo a dica do Velopata o ancião mais novo pegou na La Cabra para lhe sentir o peso;
“Epá, q´isto n´a pesa nada! Imagina se o Joaquim Agostinho tivesse uma destas!” – exclamou.
“Amén!” – rematou o Velopata ao ouvir a referência ao Santo Padroeiro.
“70 mérreis que me custaram aqueles carretos e eram uma maravilha.”
“Mas olhe lá uma coisa, isto é bicicleta para custar quanto?” – o ancião mais novo estava maravilhado com La Cabra.
“Olhe, ele não lhe sabe dizer mas é cara.”
“Mas cara quanto?”
“Mais de 70 mérreis?” – questionou o avançado ancião.
“Aquela lata ali é sua?” – o Velopata apontou para a única lata estacionada no parque, uma pick-up de caixa aberta que aparentava falhar em todos os parâmetros se a uma inspeção fosse.
“Aquela quê amigo?”
“Isso deve ter custado mais de 70 mérreis com´ós carretos que mandei vir da França.”
“Aquela car… Carri… Aquele veículo ali.”
“Sim, é minha. Acha mesmo que essa bicicleta custou mais que a minha carrinha?”
“Não tenha dúvidas.”
“Já viste isto? A bicicleta custa mais que a minha carrinha!” – o ancião mais novo rematou para o ancião mais avançado.
“Sim, sim, é normal. Só os carretos da minha bicicleta custaram mais de 70 mérreis aqui há uns anos.” – retorquiu o ancião avançado.
“Bem, vamos seguir viagem, não?” – o Falso Lento assomava à porta do tasco já sentindo os efeitos do excesso de cafeína aos quais não está habituado.
O dueto despediu-se dos anciões duodenenses e fez-se à estrada.
“Agora já sei como se sentem as mulheres quando um homem fala com elas mas não tira o olhar descarado dos respectivos atributos femeninos.” – exclamou o Velopata durante uma das muitas rampas existentes entre o Duodeno e Almodôvar.
“O quê? Que aconteceu?”
“O ancião mais novo, falou com o Velopata sem nunca tirou os olhos das orelhas dele. Os túneis aero dos seus lóbulos deviam fazer-lhe cá uma confusão…”
“Sabes o porquê disso, não sabes?”
“Então?” – o Velopata já calculava o que se avizinhava, mais piada foleira.
“É por seres comuna vegeta.”
“Pois, vai na volta o ancião é facharia como tu.”

Desde a sua origem que a aventura ao Alqueva tinha prevista uma paragem em Almodôvar para efeitos de um pequeno almoço mais abastado. Seguiriam-se longas rectas e rampas muito curtas até à próxima paragem prevista em Beja logo, todo o fuel que o dueto pudesse ingerir seria mais que agradecido.
Já em Almodôvar o Velopata aproveitou para uma visita ao Multibanco para descarregar os eirios necessários à viagem. Mas algo se passava nesta bela localidade alentejana pois enlicrados de todas as cores, formas e feitios pedalavam, calmamente passando pelo dueto. Foi então que nas suas costas o Velopata ouviu;
“Eh Velopátá! Mais quest que tu faires ici?”
Que o Velopata tem milhares de fãs por esse Portugal fora já não é novidade, agora franciús o Velopata não esperava, no entanto, desde que não se tratasse do Nacer Bouhani não deveriam ocorrer problemas e a integridade física do Velopata manter-se-ia salvaguardada.
Voltando-se o Velopata encontrou uma cara amiga e familiar, o Avec Ressabiado, boss da marca que vende os melhores equipamentos do Universo Conhecido e arredores, a 5Quinas (olha o Velopata sub-repticiamente a piscar o seu lindo olho ao patrocínio).
“Vai-se até ao Alqueva. 400 biscas e mais uns trocos. E tu, aqui a estas horas?”
“Oh, Alqueva c´est beaucoup pour moi… 400 quilometres… Mais vous sont fous et quoi?”
“Vai-se fazendo, é preciso é calma.” – retorquiu o Falso Lento.
“Oui, oui. Je suis ici pour le Masters Championaix.”
“Ah, então é por isso que isto está cheio de Masters do Universo. Bem pareceu ao Velopata que isto estava apinhado de He-mans, Skeletors e companhia.”
“Mais qui sont cettes He-mans et Skeletors?”
“Não ligues ao gajo que ele é vegetariano. Olha lá ó Velopata, se já tens dinheiro vamos lá procurar uma pastelaria senão nem amanhã chegamos ao Alqueva.” – despachou o Falso Lento.
O trio pedalou junto durante uns metros até ao entroncamento onde separavam caminhos, distância suficiente para o Velopata soltar umas larachas sobre o skinsuit todo aerocoiso do Avec Ressabiado e as notas sobre o percurso da prova que trazia coladas no tubo superior da sua Canyoncoiso, características mais do que indicadoras que em Almodôvar iria ocorrer ressabiamento à grande e à francesa. Literalmente.
Com fuel sob a forma de dois croissants de chocolate e um galão ingeridos, o dueto lançou-se à estrada. Seguiu-se a bom ritmo nas largas e vastas rectas alentejanas até Ervidel, onde saíram da N2 e entraram na N18, uma estrada ladeada de bonitas planícies.
Quem conhece a N18 sabe que se trata de uma estrada com boa visibilidade e faixas de rodagem largas, podendo os ciclistas circular a par e aproveitar assim para a amena cavaqueira. O problema é que uma Besta Munida de um Wagen, no vulgo, BMW, acreditando que o alcatrão foi inventado para seu belo usufruto através de um direito divino qualquer, colocou-se atrás do dueto buzinando insistentemente até decidir ultrapassar a uma velocidade e distância pouco recomendáveis. O Falso Lento mandou vir, depois mandou vir ainda mais e só acalmou quando o Velopata justificou o comportamento daquela aventesma enlatada;
“Sabes o porquê daquele comportamento, não sabes?”
“O gajo é estúpido?”
“Sim, o gajo é estúpido mas não apenas isso motivou aquele comportamento. O problema do gajo é que também é facho.”
Sem mais percalços, surpresas indesejadas ou enlatados armados em facharia, o dueto seguiu viagem até Beja. Terão sido os ares do Alentejo ou mesmo o cérebro já toldado pela larica que, já com Beja à vista no horizonte, levaram o Falso Lento a questionar o Velopata;
“Sabes o que é que ia mesmo bem agora?”
“Tu parares de xuxar na roda e passares um bocado na frente ao vento?”
“Não, meu. Um belo de prato de caracóis! Não queres ver se encontramos um tasco que os sirva?”
“´Tás a gozar?”
“´Tou nada! O que é que tem? O caracol é vegetariano!”
“Acompanha lá o Velopata neste raciocíno… Imagina que eras atirado para uma piscina juntamente com centenas de outros seres humanos. Depois, lentamente, a água da piscina era aquecida até à ebulição, começando a derreter-te a pele, orgãos e ossos. Tentavas fugir, trepavas pelas paredes incandecestes da piscina, queimavas a palma das mãos mas com muito custo e sofrimento conseguias chegar à berma e justamente quando pensavas que ias conseguir fugir daquele inferno abrasador vinha alguém e atirava-te de volta para a água a ferver. Deve ser uma morte bem porreira, não?”
“Mas tu já viste bem a existência miserável do caracol? O bicho anda sempre envolto em baba e a rastejar. Era um favor que lhe fazia.”
“Não sejas facho.”
“Não sejas comuna.”
Tanto no monitor do pc como no Route Creator do Strava a coisa é sempre muito bonita e simples. O problema é que a par da Srª Velopata, ninguém parece confiar nas indicações do Velopata e o Falso Lento não é excepção. Chegados a Beja, o Velopata sabia que teriam de seguir a circular de Beja no sentido Norte até encontrar um desvio para Selmes, mas mais uma vez, acometido de pensamentos fascizóides, o Falso Lento achou por bem que o dueto parasse numa bomba de gasoil e pedisse indicações. Nem de propósito, um companheiro de pedaladas Bêtêtista lavava a sua montada nas traseiras do posto e o Falso Lento apressou-se a questioná-lo sobre a melhor rota para se chegar ao Alqueva.
A conversa que se seguiu o Velopata não vai aqui descrever. Ficam apenas as notas mais importantes das recomendações que o bêtêtista nos forneceu; que o Alqueva era “já alêm”, e que o melhor local para almoçar seria no McDonald´s de Beja ou poderiam mesmo seguir mais uns 3 quilómetros e parar em São Matias onde pululam os restaurantes com esplanadas onde os pedaços de cadáveres de animais grelhados eram, na opinião do comparsa, do melhor que há.
“Bem, se calhar almoçamos aqui no McDonald´s e depois seguimos não?” – questionou um já faminto Falso Lento.
“Lá estás tu a gozar com ele outra vez. McDonald´s?”
“Epá meu, o que é que tem? Eles têm lá um menu vegetariano ou lá o que é.”
“Se pensas que o Velopata vai fingir que se alimenta com esses produtos que imitam os verdadeiros alimentos, no restaurante de uma multinacional conhecida por oprimir os seus funcionários e desrespeitar os direitos dos trabalhadores estás muito enganado.”
“Tou feito ao bife contigo.”
“Não, estás é feito ao tofu. Ou ao seitan. Ainda por cima numa volta onde a ideia é festejar a liberdade e o 25 de Abril Sempre! Ir almoçar ao McDonald´s seria só sacrilégio.”
“Mas que cacete, seu comuna.”
“É assim a vida, meu facho.”
Velopata e Falso Lento sabem agora que o bêtêtista de Beja tem de levar o seu GPS Garmincoiso à oficina pois aqueles 3 quilómetros que separavam Beja de São Matias foram na realidade aí uns 10 quilómetros de uma recta interminável ao vento nortenho o que, aliado á fomeca que começava a retesar o estômago, não se revelou tarefa simples. E o Alqueva “já alêm”… Pelas indicações dos mapas, “já alêm” eram só 75 quilómetros. Coisa pouca.
São Matias. Esta é daquelas terreolas que fazem uma certa moínha no cérebro velopático. Quem raios viveria ali; uma vila, aldeia ou mesmo sítio, que parece apenas ser constituído por uma longa recta ladeada por restaurantes e standers de enlatados?
Certo é que o dueto lá descobriu um restaurante à beira do alcatrão, dotado de uma belíssima esplanada onde poderiam monitorizar o descanso das suas montadas e… Enfardar à bruta.

Fim da Primeira Parte
PS: Querido leitor, não esquecer que no sítio do bookface do Velopata já se encontra disponível o vídeo que resume esta aventura. É favor fazer “Like”.
Abraços velocipédicos,
Velopata
Ou là là! Très bien 🙂
Merci Mr Velopateu !
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