Refeitos dos extenuantes 160 quilómetros pedalados até São Matias, bidons carregados de água e bebida isotónicocoiso, com o pandulho cheio o dueto lançou-se ao alcatrão seguindo as indicações da simpática colaboradora do restaurante (que actualmente já ninguém trabalha em lado nenhum, tudo colabora), habitualmente ignorando a previamente preparada rota do Velopata.
Seguia o Falso Lento lançado na frente, fruto da 5º ou 6ª dose cafeínada do dia ou mesmo do pedaço de perna de cadáver de animal fumado enfaixado entre duas fatias de pão que lhe serviu de fuel, a verdade é que a dado quilómetro o Velopata reparou pelo canto do lindo olho a existência de uma placa indicando a curva em direção a Selmes.
“Ei, espera aí pá!” – berrou um Velopata esbaforido para tentar colar na roda do acelerado Falso Lento.
“Que foi?” – berrou de volta o Falso Lento reduzindo o ritmo.
“Estava ali a placa que indicava a saída para Selmes. Na rota que ele preparou deveria virar-se ali.”
“Epá mas a moça do restaurante e o Bêtêtista de Beja disseram para seguir em frente em direção a Vidigueira.”
“Na rota que ele desenhou não se passava na Vidigueira mas tu é que sabes. Olha, se a malta se perder não venhas é por as culpas no Velopata.”
Nem de propósito, uns escassos metros à frente do duo, um famigerado sinal de trânsito na berma da estrada indicava que daí em diante a via se encontrava reservada a enlatados. O Velopata apontou na direção do sinal sendo recebido por um aceno de cabeça do Falso Lento;
“Siga na mesma. Até Vidigueira também não devem ser muitos quilómetros.” – disparou o Falso Lento com o mesmo sorriso que uma criança faz quando sabe que vai fazer asneira.
“Mas tu és louco ou quê? Tens noção que se um enlatado decide embirrar e te prega uma cacetada, a tua família, além de pagar o teu funeral ainda tem de pagar ao gajo a pintura nova da lata?”
“O que queres fazer então?”
“Voltar para trás e seguir por Selmes, claro!”
Inversão de marcha feita e rapidamente o dueto pedalava na correta ER 258 que levaria diretamente a Selmes.
“Sabes qual é o problema destas vias reservadas a enlatados?” – avançou o Velopata.
“Explica lá.”
“É que isto é desenhado e projectado por facharia enlatada para facharia enlatada.”
“Pois, deve ser por isso que as nossas ciclovias são uma vergonha. São feitas por comunas.”
Em Selmes o dueto viu-se perante o típico dilema do portuga que deposita as suas esperanças nas placas de sinalização indicando o caminho a seguir. Na rotunda à entrada dessa bela localidade perdida na planície alentejana, apenas duas placas indicavam o destino das três saídas possíveis; para a esquerda seguia-se para Vidigueira, para a direita em direção ao centro de Selmes e em frente, pelos vistos, nem os senhores das Estradas de Portugal saberiam. Tendo em conta o Route Creator do Strava, o Velopata sabia que teriam de atravessar Selmes e consequentemente o dueto seguiu pela direita.
Ao contrário de São Matias, Selmes revelou-se a típica aldeia alentejana, composta por uma rua central em marafado pavê, o que permitiu ao Falso Lento ganhar novamente uma boa distância do vosso amigo Velopata, que é o xoninhas do costume no que a pedalar em pavê diz respeito. Dir-se-ia uma aldeia fantasma pois não se via viva-alma na rua, com excepção claro, dos compadres sentados à sombra da esplanada do que deveria ser o tasco central de Selmes, cada um acompanhado da respectiva min na mão e que, pela sua visão periférica, o Velopata percebeu que observavam a passagem do dueto como se de extraterrestres com roupas esquisitas se tratassem.
Mas no âmago do Velopata algo não estava certo e desta vez não era xixi nem mesmo número dois.
Eis que o Velopata avistou duas nativas, aparentemente mãe e filha, que carregavam sacos de compras da sua lata para casa. Fazendo uso do seu bom senso, fantástico sentido de aventura e espectacular educação, o Velopata berrou ao Falso Lento para aguadar uns minutos enquanto esclarecia com as duas nativas se estariam ou não na rota correta. Podia ser que aquela sensação estranha no seu core passasse.
“O Alqueva é já alêm. Só têm de seguir em direção a Vidigueira e de lá é só seguir as placas. Não tem nada que enganar” – indicou a nativa mais velha.
O Velopata acredita agora que todos os alentejanos habitantes de Beja e arredores têm um fétiche qualquer com Vidigueira. Percorrendo novamente o sector de pavê sob o olhar atento dos compadres e suas mins, o dueto regressou à rotunda e seguiu em direção à famosa Vidigueira uma vez que o Alqueva era “já alêm”, apesar das contas do GPS velopático indicarem que ainda faltavam uns míseros 50 quilómetros.
A uns escassos 6 quilómetros do que aparentava ser a já famosa Vidigueira no horizonte, o Velopata sentiu o Falso Lento ficar para trás. Temendo o pior; que o moço estaria já a ficar todo arrebentado com nem metade do percurso percorrido, o Velopata reduziu o ritmo e aguardou que o Falso Lento se aproximasse, apenas para perceber que o seu problema não eram pernas (ou a falta de), mas sim algo no seu GPS Garmincoiso.
“Olha lá, isto parece-te uma boa altura para andares a brincar com o Tamagotchi?” – questionou o Velopata.
“Não man, ´tou a verificar os mapas e a tentar perceber se estamos no caminho certo.”
“E?”
“Parece-me que não precisamos de ir a Vidigueira. Ali à frente existe um cruzamento onde podemos virar para Alcaria da Serra e essa estrada sim, leva-nos ao Alqueva diretamente.”
“Alcaria da Serra, sim! Ele lembra-se que no percurso teriam de passar por lá!”
E assim foi. Velopata e Falso Lento seguiram por Alcaria da Serra até chegarem a Marmelar, um lugar-vila-aldeia-coiso que muita galhofa proporcionou ao dueto uma vez que;
a) quem raios chama a uma terra Marmelar, ou seja, o verbo de fazer marmelada;
b) como se chamariam os habitantes do local; marmelenses, marmeletes ou mesmo marmelos?
Passando a terra dos marmelos a paisagem começou a transmorfar-se. A parca vegetação das planícies alentejanas foi substituída por luxuriosa vegetação e árvores de maior porte, indicando que cursos de água deveriam estar perto. À esquerda da estrada, uma gigantesca cadeia montanhosa erguia-se cobrindo o dueto com a sua portentosa sombra.
Após um pequenito topo seguia-se uma bela estrada recta ladeada de pinhal. Foi então que o Velopata foi surpreendido por um sonoro restolhar de folhas e ramos a quebrarem.
“Olha ali, ´tão bonitos! São bambis!” – gritou o Velopata. Se alguém não soubesse, a avaliar pelo volume a que este dueto comunicava, diria tratarem-se de dois ciclistas mocos.
“Quais bambis pá… Aquilo são veados.” – rematou o Falso Lento.
“Que nada man! São bambis sim! Veados é coisa de brasileiro.”
“Vai na volta, os bambis ou veados ou lá o que são vão bem é no forno com umas batatinhas a murro.”
“Não sejas bárbaro!”
“Bárbaro? Como assim? Se pensares bem, metade do prato seria vegetariano, ou as batatas não são vegetarianas?”
“Ele vai ignorar e fingir que não ouviu esse comentário de mau gosto.”
“Mau gosto nada, pela maneira como os teus bambis saltam devem ter uma carnicha bem apetitosa!”
“Mas estás d´empeçe com o pobre Velopata, ou quê? Onde é que já se viu comer os pobres bambis… Olha lá que fofos, eles correm da mesma maneira que a Cadela Descontrolada, aos saltitos com as quatro patas esticadas.”
“Olha, por falar nisso, a tua cadela também é vegetariana?” – questionou um Falso Lento carregado de sarcasmo. É no que dá passar muitas horas a pedalar com o Velopata, ganham-se maus hábitos.
“Claro que não. O Velopata não impõe os seus ideais a ninguém, isso é coisa que só um facho como tu faria.”
“Ah, então já percebi.”
“Percebeste o quê?”
“A tua cadela também é comuna.”
Correndo e saltitando pelo pinhal os bambis desapareceram do radar e o dueto deu por si perante uma placa que indicava uma curva à esquerda em direção ao Alqueva.
“Por ali, não?” – questionou o Velopata apontando para a placa.
“Não. Aquilo deve ser para o lugar do Alqueva. Para a barragem seguimos em frente.”
“Tens a certeza?”
“Tenho sim. Além de que virar aqui à esquerda vai-nos levar na direção daquela serra.”
De peito ao vento na frente, trabalhando para levar o dueto a bom porto, o Velopata voltou a sentir o Falso Lento perder a roda e ficar para trás, novamente entretido a brincar ao Tamagotchi com o seu Garmincoiso.
“Então, mas o que é que foi agora?” – berrou o Velopata.
“Epá, acho que nos enganámos outra vez. Esta estrada termina ali à frente.”
O Velopata inverteu a sua marcha e pedalou até junto do Falso Lento;
“Ele não disse que deviam ter virado lá atrás?” – a poker face do Velopata valia mais que mil palavras.
“Sim, parece que vamos ter de atravessar aquela serra.” – rematou um desaustinado Falso Lento.
E que serra os aguardava. Uma marafada subida de 3 intermináveis quilómetros onde o GPS várias vezes picou nos 10% de inclinação, mas eis que, após aquele último hercúleo esforço, se avistava o lugar do Alqueva a escassos quilómetros do cume que haviam escalado. Feitas as contas, apenas mais 7,8 quilómetros foram pedalados por engano.
Deduzindo que na barragem do Alqueva não deveria existir nenhum tasco onde descansar e dar ao serrote, o dueto decidiu parar em antes de atravessar a dita cuja e iniciar o regresso a casa.
“A sério?” – o Velopata não queria acreditar no que os seus lindos olhos viam.
“Então man? Desta vez eu nem disse nada.”
“Milhares de cafés, tascos, tasquinhas e tascóides nesta terra e tu tinhas de escolher uma esplanada com animais mortos embalsamados a servir de decoração?”
“Epá, nem tinha reparado.”
“Pois… Só faltava mesmo isto ter para aqui uns posters do Benito ou do António e tu sentias-te em casa!”
“Não sejas exagerado, ou preferias uns posters ou umas estátuas com sojas ou tofus ou lá o que quer que seja que vocês comunas vegetas comem?”
“Olha lá bem aquela perdiz ali, ´tadinha. Até parece que foi morta a sorrir e tudo!”
“Mas onde é que tu vês a perdiz a sorrir? Está mas é calado que o teu mal é fome. Toma lá conta das binas que eu vou lá dentro ver o que há para comer.”
Minutos depois, o Velopata ainda limpava o olhar marejado de lágrimas quando o Falso Lento regressou trazendo consigo duas fresquíssimas colas e… Dois pastéis de bacalhau.
“Que é isso?” – questionou um Velopata atónito com a tão frugal quantidade de paparoca na mesa.
“Colas e pastéis de bacalhau.”
“Achas mesmo que isso é suficiente para um gajo e um Velopata que já levam duzentos e treze quilómetros nas pernas?”
“A mim chega-me. Tenho de perder peso.”
“Então mas nem há 20 quilómetros atrás estavas capaz de comer um bambi e agora… Um mísero pastel de bacalhau?”
“Essa ainda é outra que tens de me explicar. Não comes carne mas comes peixe, certo?”
“Sim.” – retorquiu um Velopata hesitante, já de sobreaviso a uma possível piada foleira.
“Então e o peixe não é um animal? Que raios de vegeta és tu?”
“Mas quantas vezes tem ele de explicar? Ele nunca disse que era vegetariano, vós é que haveis feito o filme todo.”
Os minutos que se seguiram foram passados em amena discussão; o Velopata explicou que a alimentação humana baseada em carne trouxe mais problemas e doenças que benefícios e até mesmo a atual existência do Homo Sapiens sapiens (ou mesmo o Homo velopatus), só foi possível porque o hominídeo anterior, que habitava perto das regiões costeiras da África do Sul, se começou a alimentar de produtos do mar, tendo os ómegas, vitaminas e outros nutrientes presentes no pescado contribuído para uma evolução cerebral tal que culminou com o apogeu da nossa espécie; só assim foi possível chegar ao século XXI, onde a humanidade já tem malta a viver 24/7 no espaço e programas televisivos como a Casa dos Degredos.
“Conclusão, tu és é um mix de comuna-vegeto qualquer coisa marada.” – foi o óbvio ataque certeiro natural do Falso Lento.
“Ele devia era mudar-te a alcunha, passavas a ser o Facho Lento.”
O Velopata deixou o Falso Lento a monitorizar o descanso das montadas enquanto se deslocou ao interior do tasco para procurar fuel a sério e uma rápida ida ao wc para reduzir novamente o seu nível hídrico.
O trabalhad… Colaborador do tasco era um nativo alentejano e uma personagem, no mínimo, caricata. Respondeu sempre a todas as questões que o Velopata colocou sobre o fuel disponível no tasco com trocadilhos e ditados populares, alguns completamente desconhecidos do Velopata, muito provavelmente, indígenas da região do Alqueva. Comiserado, o Velopata regressou para junto do Falso Lento acompanhado por uma garrafa de 1,5 litros de água bem fresca e… Dois pastéis de bacalhau.
Chop-chop digerido com recurso a dois baldes de café e o dueto estava pronto para se lançar novamente ao alcatrão, percorrendo rapidamente os dois quilómetros que separavam o tasco da barragem do Alqueva, onde iriam parar para fotografias que serviriam para este alucinado espaço cibernético além de comprovar a presença do dueto naquela que é uma das maiores barragens da Europa e talvez até de Portugal.
Uma enorme e rasteira forma negra assomou à estrada, proveniente da berma esquerda.
“Olha ali!” – berrou o Velopata que, como bom biólogo que é, fez com que o bicho se pirasse logo de volta para de onde veio.
“Já vi. É um gambá!” – berrou de volta o Falso Lento.
“Mas qual gambá pá! Lá estás tu com as brasileirices.”
“Então é o quê?”
“Aquilo é um crocodilo.”
“Os pastéis de bacalhau devem-te ter feito mal, crocodilos no Alqueva?”
“Sim, ele lembra-se de aqui há alguns anos ter lido uma reportagem sobre um Crocodilo Dundee qualquer querer montar uma exploração de crocodilos aqui. Parece que ainda trouxe uns quantos e isto é como nos filmes de terror, é só uma questão de tempo até eles se reproduzirem e começar a matança de adolescentes incautos que vêm à noite para a água praticar o bom do amor.”
“Definitivamente os pastéis de bacalhau não te fizeram bem.”
“Ouve o que ele te diz, quando se parar para as fotografias, não te aproximes da água.”
O dueto descobriu um miradouro com uma fantástica paisagem sobre a barragem e apesar dos constantes apelos do Velopata para que nenhum dos dois se aproximasse da água, ambos colocaram a vida em risco pois poderiam muito bem ter servido de almoço para um crocodilo faminto, apenas para conseguir tirar as duas fotos abaixo;


Refeitos da intensidade da tamanha proeza que foi tirar fotos perto de águas infestadas de crocodilos, o dueto atravessou a barragem lotada de enlatados de todas as formas e feitios que ali se dirigem para apreciar a paisagem.
Estavam cumpridos os 215 quilómetros da primeira parte da aventura e estava mais que na hora de iniciar o regresso a casa.
Fim da Segunda Parte
Abraços velocipédicos,
Velopata