Em Bicicleta sem travão, todos ralham e ninguém tem razão

Pois é querida nação de leitores velopatóides, a polémica está instalada no mundo velocipédico e desta vez não se trata de ciclistas apanhados com novas substâncias dopantes ou mesmo ciclistas que curiosamente adoecem no dia antes de uma importante prova tendo de recorrer a medicamentos de conhecidos efeitos potenciadores da performance para o seu tratamento. Não está em discussão a existência de bicicletas ou rodas com motores escondidos. O problema está sim, na aceitação ou não do uso de travões de disco no pelotão profissional mediante autorização da UCI. Que é a União Ciclista Internacional e se o leitor civil ainda não compreende estas siglas então é porque tem muitas publicações do Velopata em atraso.

Mas antes que o leitor civil desespere já com o facto de esta ser uma publicação técnico-táctica-coiso o Velopata explica.

Até há bem pouco tempo as bicicletas de estrada, essa maravilha da tecnologia e espírito sagaz humano, eram equipadas com o clássico travão de ferradura. Inventado circa 1890 e apesar das inúmeras formas e feitios que surgiram ao longo da sua evolução, é actualmente o tipo de travão mais amplamente distribuído pelo mundo velocipédico sendo o seu modus operandi bastante simples; o ciclista pressiona uma alavanca que puxa um cabo que, por sua vez, leva a que dois calços de um material borrachóide sejam pressionados contra o aro da roda (ou jante como gostam de dizer os amigos enlatados do Velopata), reduzindo assim a velocidade desta através da frição.

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O clássico travão de ferradura inventado novamente pela Shimano em 1990. Como é que se inventa uma coisa novamente? Fica a questão.

Como qualquer gajo solteiro saberá, o problema da frição é que esta origina calor e este claro está, tem de ser dissipado, daí o material borrachóide. Os aros das rodas em alumínio também ajudam a esta dissipação de calor, no entanto, sempre a inovar e a assaltar as carteiras do mundo velocipédico amador, as marcas de bicicletas decidiram apostar em rodas cujo aro, raios, cubo e até mesmo os mamilos dos raios (o Velopata adora esta, quem diria que uma bicicleta até mamilos tem…), são em carbono, daquele que é 100% carbono, mesmo só carbono, full aero carbono; sempre com a ideia que o gajo que possua as referidas rodas pode chegar antes dos amigos ao tasco na serra e ser assim o herói do fim de semana.

Ora as rodas em carbono dissipam pouco ou nenhum calor correndo o risco de se desintegrarem quando os travões são muito requisitados. Na realidade (e não na fantasia que vai no seu cérebro enquanto escreve), o Velopata conhece histórias que quase terminaram em catástrofe exatamente por esta questão; descidas longas e técnicas, terminologia que apenas significa que não vai ser necessário pedalar com muito afinco para atingir velocidades absurdas e vai mas é com cuidado senão acabas na UCI que neste caso é mesmo a Unidade de Cuidados Intensivos. Nestas histórias o ciclista em questão acabou esbardalhado no alcatrão pois a roda de carbono, 100% carbono, daquele que é mesmo só carbono, full aero carbono, após muito requisitada por parte dos travões, acabou por aquecer de tal modo que se escaqueirou levando consigo o referido companheiro de pedaladas.

Com certeza o leitor já percebeu que o Velopata é fã de rodas de alumínio; primeiro porque antes de mais vem a sua segurança, depois porque é teso e rodas em carbono, 100% carbono, daquele que é mesmo só carbono, full aero carbono e com mamilos sexys em carbono só as conseguiria obter se fosse a um multibanco e em vez de utilizar o cartão de crédito usasse uma botija de gás.

E o Velopata nem vai entrar na discussão da malta que opta por rodas em crabone, material no qual as rodas encomendadas nas lojas chinesas online são feitas e que custam duas tutas e meia ao invés de pequenas hipotecas da casa e latas de conservas para o jantar da família durante resto do mês, que é o que custam as adquiridas em qualquer loja da especialidade. Rodas em crabone serão as rodas que a equipa de ciclismo do Estado Islâmico usa, sempre propensas a espalhar o terror a quem se arrisque a seguir na roda de uma bicicleta equipada com estas pequenas bagatelas e cujo ciclista aparente tendências suicidas.

O Velopata divaga.

Regressemos ao mundo dos travões. Um outro problema dos travões de ferradura prende-se com a metereologia que como qualquer cicilista saberá, regra geral, é sempre adversa ou não fosse o São Pedro ter uma quezília qualquer contra os velocípedes. Os gajos solteiros também conhecem esta lei muito bem; quando o conjunto travão de ferradura e roda são molhados, o seu poder de travagem é severamente comprometido e aquilo escorrega como manteiga deixada ao sol no verão algarvio, em suma, trava mal.

Para esta questão o Velopata tem uma solução simples, aperfeiçoada  ao longo dos muitos anos de experiência acumulada. Esta técnica poderia mesmo ser patenteada pelo Velopata e dá pelo nome de “travagem atempada” ou mesmo “pedalar com juízo e cautela” pois ao Velopata ninguém paga para pedalar.

A grande questão é que o bom senso não traz dinheiro às marcas de bicicletas e claro está, sempre preocupadas com a segurança dos seus clientes, em meados de 2014 e 2015 as principais produtoras de bicicletas do mundo apresentaram o que seria a nova revolução no mundo da travagem velocipédica; o travão de disco nas bicicletas de estrada.

Na humilde opinião do Velopata importar ideias do Bêtêtê, onde o travão de disco surgiu pela primeira vez, para o mundo velocipédico da estrada seria como a Ferrari importar ideias do Fiat Uno para os seus modelos, uma vez que as bicicletas de estrada estão para as restantes bicicletas como os Fórmula 1 estão para os restantes enlatados. Mas só por esta vez o Velopata permite-se o benefício da dúvida.

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O travão de disco, presença mais que habitual nas bicicletas de bêtêtê que estão para as bicicletas como os jipes com tração 4×4 estão para os restantes enlatados.

O leitor civil deve agora aceitar o pedido de desculpas do Velopata pois nem ele, do alto da sua magnificiência velocipédica, entende como aquela coisa do travão de disco funciona.

A UCI (neste caso regressamos à União Ciclista Internacional), sempre preocupada com a segurança dos atletas, apesar de nunca ter respondido à carta aberta com recomendações que o Velopata enviou, sofreu pressões das principais marcas de bicicletas para aceitação dos travões de disco nas bicicletas profissionais e decidiu iniciar testes com os dito cujos em finais de 2016, permitindo que alguns homens e mulheres no pelotão World Tour os utilizassem experimentalmente em algumas corridas.

E a porca torceu o rabo.

Logo na primeira corrida onde alguns ciclistas usaram travões de disco, um desgraçado teve o azar de se escaqueirar na frente do pelotão. Resultado; um daqueles amontoados de licra, carbono daquele que é mesmo só carbono, 100% carbono e full aero carbono e para além das habituais escoriações, nódoas negras, orgãos amassados e clavículas partidas uma novidade nas desgraças que se podem abater sobre um ciclista; cortes provocados pelos referidos travões de disco.

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O travão de disco faz a sua primeira vítima. Um profundo corte na perna do ciclista da Movistar, Fran Ventoso.

Ao que tudo indica a utilização de travões de disco pode levar a que membros sejam decepados e braços e pernas amputados aquando de uma molhada velocipédica. Isto faz bastante sentido uma vez que será do conhecimento geral de toda a população velocipédica que uma roda pedaleira com 52 dentes afiados ou mesmo uma cassete com os seus minúsculos dentinhos carregados de óleo lubrificante não têm o mesmo efeito decepante. Pelo contrário, embater  a 50 km/h (ou mais), contra um dos referidos componentes acima dá a sensação que um unicórnio fofinho nos está a lamber a pele. Aliás, o Velopata sabe de fonte segura que os ninjas japoneses deixaram de usar os míticos shuriken e passaram a usar carretos de cassete, escolhendo-os de acordo com a gordura do membro a decepar; se o alvo tivesse o braço ou perna gordo optar-se-ia por atirar um carreto 32T, se o gajo fosse magrinho bastaria atirar um carreto 11T e o serviço estava feito.

Quando Fran Ventoso descarregou a sua frustação nas redes sociais mediante o sucedido os gritos de ultraje seguiram-se em cascata. Teorias da conspiração abundaram mas um facto curioso é que foram publicados vários vídeos na internet onde mecânicos de várias lojas da especialidade usavam as mãos nuas para travar os malogrados travões de disco que chegavam a rodar a 60 km/h e voilá; as suas mãos saíam incólumes. Não satisfeita e com base em tanta informação contraditória a UCI decidiu continuar os testes.

E a porca torceu o rabo ainda mais.

Na corrida seguinte lá estavam mais umas quantas máquinas equipadas com os suspeitos travões de disco. E novamente a desgraça se abateu, novo amontoado velocipédico e desta vez a fava calhou a um ciclista da Cannondale-Drapac que ganhou um andar novo.

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Dispensam-se comentários ao bronzeado do rapaz. Já as pernas as leitoras femininas podem comentar à vontade uma vez que se assemelham às do Velopata, ultra-mega-hiper tonificadas.

O problema é que as desgraças não cessaram e a UCI lá mandou suspender os testes.

Óbvio que se alevantou um coro de críticas por parte das marcas de bicicletas que gastaram rios de dinheiro em marketing e viam agora deitadas sobre o alcatrão as suas hipóteses de lucro. Mesmo quando os vários modelos colocados já disponíveis para compra pelo comum mortal foram alvo de retomas por “questões de segurança”, que é como quem diz “metemos o pedal na poça”, entre as várias desgraças ocorridas um pouco por todo o mundo há umas quantas que não deixam de ter a sua piada;

  • certos modelos, quando pressionada a alavanca do travão faziam com que a roda cessasse completamente o seu movimento o que resultava num espectacular mergulho encarpado com duplo mortal invertido para o alcatrão, merecedor de nota 10 se lá estivessem os juízes das provas de mergulho olímpicas;
  • outros modelos, quando pressionada a alavanca, faziam com que a roda da frente se soltasse do quadro saíndo disparada para a frente – uma imagem certamente irónica tendo em conta as recentes revelações de motores escondidos nas rodas.
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“Mas quem me mandou alinhar nesta triste ideia dos travões de disco e motores nas rodas?” pensa o desgraçado ciclista da Team Sky.

Claro que a tecnologia que é colocada à venda para o comum dos mortais não pode nem deverá ser comparada à que a prozada utiliza, no entanto, parece ao Velopata que a tecnologia ainda é recente e como tal deve amadurecer antes que se pense já nas suas possíveis aplicações mas uma coisa é certa, no dia em que a Estrela Vermelha soltar a sua flatulência final e o Velopata for obrigado a procurar uma nova estrela, esta será já certamente equipada com travões de disco.

Se os travões de disco são melhores que os clássicos ferradura? Com certeza, caso contrário a malta do bêtêtê e do ciclocrosse não usariam e abusariam. Mas nunca esquecer as palavras de Sérgio Paulinho, esse grande campeão velocipédico tuga e detentor de um currículo invejável na estrada, quando questionado sobre os amontoados velocipédicos que todos os anos inundam as televisões durante as provas profissionais:

“Muitos ciclistas parece que se esqueceram que as bicicletas têm travões…”.

Quanto ao seu uso pelos amadores a opinião é discutível. Num primeiro ponto são poucos os ciclistas que o Velopata vê na estrada quando a borrasca aperta, preferindo o conforto, ou melhor, o desconforto e sofrimento dos rolos. Numa segunda análise o Velopata nunca esquecerá as palavras do seu mecânico (que era e continuará a ser o melhor mecânico do mundo enquanto o Velopata espera ansiosamente que a sua licença sabática termine), que após instalar na Estrela Vermelha uns travões topo de gama state of the art full aero e coiso, exclamou;

“Tu és o único ciclista que conheço que está preocupado com a travagem.”.

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

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