“Se soubesse nem trazia a pedaleira grande.”.
Foi com esta afirmação que o Velopata decidiu desconectar a mente do corpo. Apresentava-se pela frente mais uma parede onde o GPS chegou a marcar 16%. O cérebro era desnecessário e só iria atrapalhar o que seria uma metodologia de treino fácil; não pensar, morder o guiador com todos os dentes e fazer força.
“Deixa estar que eu logo te lixo.”.
O Pata Negra convidou o Velopata para se estrear entre as fileiras do Clube Desportivo Areias de São Jão (CDASJ), numa volta de treino de cento e poucos quilómetros. Sendo este um treino onde o principal objectivo era o entrusamento com os novos companheiros de equipa, o Velopata pensou que deveria ser um percurso fácil e a ser percorrido em modo de frequência cardíaca HT-LT, ou seja, high talk – low training, numa linguagem menos técnica. Mas quando o Pata Negra sinalizou a intenção de virar à esquerda, pouco antes do grupo chegar a Santa Catarina, o Velopata percebeu que tinha sido lixado. Com F maiúsculo.
Em tempos idos o Velopata percorreu aquela estrada. Uma única vez e em sentido contrário. Lembra-se que está em mau estado e tem umas descidas tremendas, uma delas exageradamente perigosa pois apresenta dois segmentos sem alcatrão. Ora descidas tremendas, em sentido contrário, traduzem-se em penosas subidas.
“Por aqui? Mas esta estrada não está toda lixada?” – perguntou um Velopata ansioso.
“Não! Estava, mas agora puseram um tapete novo que é do best!” – ainda assim o Pata Negra viu o Velopata franzir o sobrolho.
E o Velopata tinha razão.
E a estrada estava mesmo toda lixada. Novamente com F maiúsculo.
Quando o belo e leve rufarzinho que o pneu da Estrela Vermelha produz quando suavemente desliza pelo alcatrão é o único som que o Velopata ouve – a estrada é boa. Quando esse som que roça o divino é substituído pelo som do alarme na conexão neurofibroencefalocarbónicoaero que existe entre o Velopata e a Estrela Vermelha – então a estrada é má. Quando o Velopata se apercebe que depois de uma enchocalhadela nem consegue orientar o cérebro a tempo de focar a cratera que vai originar o enchocalho seguinte – a estrada é má.
É simples. Para o Velopata não tem mais ciência que isto.
Apesar dos protestos foram poucos os quilómetros de má estrada. Mas parafraseando um outro blog que o Velopata gosta;
Caguinchas gonna caguinchaite.
“A sério? Ó Pata Negra, com tanta estrada boa…” – o Pata Negra levava com a já tradicional rebocada velopatiana encharcada em sarcasmo.
“Isto é pouco e já passa! Vês o power da Roubaix? Não sinto nada!” – o Pata Negra aproveita todas as oportunidades para vangloriar a sua Specialicoiso.
E verdade é que a estrada mudou sim.
Para pior.
De um mix de estrada e campo minado, mudou para rampas, sempre a picarem acima dos 10%.
Primeiro subiam-se 800 metros a 10%.
Depois desciam-se 750 metros a abrir.
Depois era escalar mais 900 metros a 15%.
Depois vinha serra abaixo, 1000 metros a 20%, modo full encolhido aero coiso.
E depois mais 1200 metros a trepar. Uns 16% que sugavam toda a energia das pernas.
E depois…
Está a ver o filme, caro leitor?
Não era dose, nem mesmo dose e meia. Eram 2 pratos cheios. De papo-secos. Servidos sempre do mesmo modo; ainda nem um se tinha engolido e já a estrada presenteava outro.
“Deixa estar que eu logo te lixo. Arranjo aí uma volta em que vais ver como elas te mordem…” – se não fosse o hábito do Velopata ter sempre, pelo menos, uma das mãos no guiador, o Velopata esfregaria maquiavelicamente as mãos, particularmente depois de saber que alguns desta troupe do CDASJ não conheçem a alegria que é ver homens adultos vestidos de licra a chorar entre Cachopo e Ameixial e provavelmente nem sabem como tantas vezes tem acontecido, um ciclista urinar-se na ligação entre Ameixial e Salir.
E o pior é que o desgraçado do Pata Negra, logo no primeiro papo-seco, perdeu toda a vergonha e descaramento e ficou para trás. Desapareceu no horizonte arrastando consigo um outro elemento. Deixou o Velopata sozinho com outros dois até então pouco falados na viagem.
Um deles era pouco mais baixo que o Velopata e montava uma Trek. Que é uma marca que o Velopata não vê com bons olhos pois na sua infância, foi a que lhe levou o avô. Pelo menos ele sempre ouviu os pais referir-se à questão como; “O Avô ´teve um treco.”.
O outro, o Velopata não conseguiu ver bem, só percebeu que era um gajo pequenino.
E que saíu lançado.
O Velopata e o comparsa, que montava o treco, tentaram acompanhar. O leitor note que não é acompanhar o pequenote. É acompanhar aquele ponto no horizonte, lá bem no fundo da estrada, que é o pequenote. Só é alcançável quando; ou ele reduz o ritmo ou… Ele reduz o ritmo.
“Ele faz sempre isto?” – perguntou um Velopata ofegante, apontando para o ponto negro que se afastava cada vez mais no horizonte.
“É. Ele é assim mauzinho.” – respondeu o moço do treco.
“Se soubesse nem tinha trazido a pedaleira grande!”.
“Realmente o Pata Negra foi tramado, até para ele próprio. Vai sofrer pouco vai. Mas que raios lhe terá dado para nos vir meter num percurso destes?”.
“Até calculo.”.
“Então?”.
“Para impressionar o Velopata. Vocês são a malta rija da vossa equipa que está aqui para o impressionar mas não te preocupes.”.
“Eu preocupar-me?”.
“Sim. O Velopata deixa-vos chegar a Cachopo primeiro. Não quer humilhar ninguém logo assim à bruta no primeiro dia.”.
De honra ofendida, o moço agarrou o treco com unhas e dentes e atacou o Velopata que retaliou. Esbaforidos lá se aproximaram um pouco mais do pequeno ciclista que, lá na frente, continuava a galgar subidas alheio à luta pelo primeiro dos últimos.
E quem deixou o Velopata em modo pulmonar flat-line foi o moço do treco.
Uma sova no último daqueles pequenos topos bastardos e lá o Velopata baixou a guarda rendido. O que restava do único pulmão ativo que tentava procurar oxigênio saudável no exterior da boca do Velopata voltou às entranhas, recuperando enquanto o Velopata finalmente se aproximou do moço do raio do treco.
“Como___é_____que____te____chamas mesmo? És_____o Fábio?” – atente caro leitor, aos bofes esbaforidos do Velopata.
“Não, o Fábio é aquele que vai lá à frente. Eu sou o Sérgio?”.
“Muito____prazer_____Sérgio.”.
“Estás bem?”.
“Sim__sim. Então e tens alcunha? Para efeitos do blog, para não colocar nomes verdadeiros, que fica foleiro.”.
“Ah, sim. Chamam-me Quintana.”.
“Ah, sim. Prazer.”.
Merda. Com o pequeno lá à frente, que tem pinta de pertencer à liga do pelotão amador dos Pros Resabiados, que não deve confundir, caro leitor, com o nosso Pro Ressabiado. O nosso já conhecido Pro Ressabiado foi assim alcunhado exatamente por, há 2 meses atrás, aquando da inauguração do blog, ser o único pro ressabiado pertencente à Liga dos Pros Ressabiados com quem o Velopata ocasionalmente pedala.
Agora são 2. E ficou o registo que com este Quintana devem ser 3.
O Velopata vai ter pelo menos 3 pros ressabiados para treinar com.
Se a barraca está armada?
Montada com martelo e escopro.
Aqui entre nós, caro leitor, aquilo é malta do hardcore strava. Stravalcóolatras. Números, estatísticas, watts por kilo, fatores de atrito, relações segmento de Strava por kilo, endurance anaeróbia por massa de qui-quadrado, testes de qualquercoisaquenuncapercebi e potência por percentagem do treino em fequência cardícaca modo FTVTHXZ. Quando aquela malta descobrir que o Velopata nem cardiofrequencímetro tem…
A estrada de Alcaria do Cume para Cachopo.
O Velopata pausa para congratular os senhores e senhoras das estradas de Portugal mas o serviço foi maravilhoso e o Velopata sabe que fala em nome de todo o pelotão velocipédico amador do algarve quando agradece. Ficou uma descida e subida cujos últimos quilómetros são um mimo de se fazer. Por favor continuem o bom trabalho!
Apesar dos protestos do Velopata para que os primeiros a parar no café em Cachopo fossem o pequeno meio pro ressabiado lançado lá na frente ou o Quintana, que o Velopata não estava virado para humilhar ninguém, o trio parou junto mas não no habitual café. Estava fechado.
O leitor pode agora não entender. O Velopata repete;
O café que está sempre aberto na Serra, faça sol ou chuva, gerido pela simpática velhinha está fechado.
Isso quer dizer apenas e uma coisa só, quando um café destas dimensões sociais está fechado.
“Morreu alguém.”.
O Quintana e o pequeno pro ressabiado trocaram olhares. Apanhados de surpresa pela lógica velopatóide. Que é só parva;
“Lá morreu alguém homem! Ali aquele café que tinha a esplanada com os velhos bifes ao sol parece-me melhor até! Siga!”.
O Velopata aproximou-se e ainda ouviu os sussurros entre ambos;
“Não admira nada aquilo do Tróiapocalipse. Este gajo só faz filmes de mortes e desgraças, como é que se foi meter no meio de seis mil e quinhentos ciclistas?”.
“Hã?” – o Velopata, topando a semicerrada troca de impropérios interrompeu.
“Estávamos a falar do Pata Negra. Quanto tempo deve demorar?”.
“Aí uma hora não?” – o Velopara inocente e prontamente respondeu.
Risada geral. E o Velopata também se riu muito.
Parece que uma hora de avanço em 20 quilómetros é mesmo muito tempo em terminologia Stravovelocipédica.
Humilhantemente muito.
Os bifes eram uns velhotes simpáticos que nos contaram em inglês como a geografia e o constante sobe e desce da serra algarvia era um bom ambiente para treinar. Por isso é que estavam ali de carro; Velopata 1 – 0 Bifes. Que lá na terra deles, algures no norte da bifolândia, era onde regularmente pedalavam e era mesmo tudo muito semelhante aqui ao nosso algarve.
É igual sim senhor mas em mais molhado. Lembrou o sempre moralizador Velopata. 2 – 0.
E sim, lembraram os simpáticos bifes já não tão sorridentes. Era muito mais molhado que isso.
Como uma cena de um filme, a simpática mas esquecida senhora do cafézinho lá se conseguiu orientar com o pedido e quando aterrou com as sandes na mesa, os bifes despediram-se e saíram de cena enquanto o Pata Negra e o outro pobre escalfado entravam. Timing perfeito. Bife sai. Entra Pata Negra. O Velopata é vegetariano e nem é pago para escrever isto.
Risada geral com o habitual “a minha é maior que a tua, velocipédicamente falando”, e seguiram-se os morfes com o também tradicional silêncio de 5 gajos e 3 sandes.
Uns somíticos.
No final nem tempo foi fornecido ao Velopata para apreciar o seu expresso acompanhado pelo belo do cigarrinho, que poderia comprovar os rumores que circulam sobre o Velopata se fazer carregar das gramas extra do tabaco e isqueiro nos treinos.
Isqueiros em carbono, é o truque do Velopata.
Só depois o Velopata percebeu que alguém, talvez o elemento que vinha com o Pata Negra, um tal de Nuno, que o Velopata nunca chegou a saber a alcunha, tinha de estar não sei onde nem a que horas. O ritmo era “apressar”. A verdade é que este tal de Nuno também não vinha nada mal artilhado. Pelo menos tinha uma BH G5; é bina tipo a do Velopata e tudo, mas em mais aero e isso; aquilo era bicicleta para mandar discurso.
Foi a sofrer.
Velopata já no elástico e lá na frente não era só o pequeno que anda sempre lançado e o Quintana. O tal Nuno, gajo da BH também, claro. Do Pata Negra nem sinal. Para trás. Lost in oblivion.
Quando o Pata Negra colou ao já a morrer-de-frio Velopata que optpou por esperar, foi fácil perceber. O Pata Negra tinha tirado uma gigantesca senha só de ida.
“Ói! Então como é que está a correr o teu treino XTFHFITcoiso?
“Hã?” – o Pata Negra ainda meio desaustinado do último esforço na colagem de roda.
“O teu treino LTFITcoiso?”.
“Eu só quero é chegar a casa. De preferência vivo. Não aguento estes FTP´s!”.
“É isso sim. Diz que é dos éfetêpês.”.

O Velopata separou-se do Pata Negra já em Loulé e relatos posteriores contam que o Pata Negra ainda tentou descarregar os seus 4 comparsas no regresso a Albufeira. É a tal cena do “a minha é maior que a tua, velocipédicamente falando”, agora tirada a carbono caro e licra apertada, no alcatrão.
Eo Velopata foi para casa fazer o que os ciclistas mais gostam de fazer, que não treinar ou comer. Dormir. De nada serviu dizer à Srª Velopata que tinha dói-dói nas pernas da dureza dos papo-secos anteriores. Ainda havia louça do almoço por lavar. É que à noite havia jantar de natal do CDASJ.
E essa é uma história muito longa para contar num post que já tanto contou.
De uma coisa o Velopata pode deixar o leitor descansado. Uma data de gajos sentados à mesa a comer e a beber líquidos com alcóol. As expectativas são, à partida, baixas. Foram umas boas horas de “o meu é maior que o teu, velocipédicamente falando”, bem passadas.
Um muito obrigado a todos, que espero conhecer brevemente, de preferência montados nas bicicletas. A senhora incluída e tudo.

Foi uma honra partilhar este jantar com vocês. Um Feliz Natal e um bom ano de pedaladas a todos!
E há quem chegue a este ponto de leitura do artigo e esteja, há muito, a súar.
E a súar mais, agora que já leu a linha de cima.
Como o Velopata não pode ser visto a conduzir; em breve será obrigado a isso, vai ser algo na escala de Richter sim, adivinhem quem se disponibilizou a levar o Velopata enlatado, um favor que não terá gratidão maior. O vosso amigo, Pro Ressabiado.
Agora ele está a súar ainda mais.
O leitor quer acreditar que chegados ao parque de estacionamento do restaurante, o Pro Ressabiado confiante no olhar já embriagado de comida do Velopata, estacionou a sua lata na Ciclovia.
“Vou deixar aqui na ciclovia. Não há-de haver stress.” – afirmou o Pro Ressabiado, modelo bom folião.
“Ei, tu não vais deixar o carro Aqui.”.
“Hã? Ó Velopata deixa de ser esquisito. Não há lugar em lado nenhum, só na ciclovia.”.
“Ólha… Tu vens a um jantar de uma equipa de ciclismo e vais estacionar na Ciclovia?”.
“O que é que tem?”.
“´Tás a gozar.”.
“Epá não sejas fundamentalista!”.
“Não é ser fundamentalista. É a ironia. Vens a um jantar de uma equipa de ciclismo, composta por gajos que adoram ciclismo e bicicletas e… Estacionas na Ciclovia.”.
“Está bem. Olha que ´tás com sorte que ´tá ali a saír um. Também quem é que é o maluco que vem para aqui pedalar na ciclovia às oito da noite?”.
“Pro Ressabiado tu não me peguntáste isso, pois não?” – o Velopata carregou bem pesado no sarcasmo.
O Pro Ressabiado enfiou a viola no saco.
Sem troco para dar ainda levou com um daqueles lançamentos de bicicleta no sprint;
“Quem é que é o maluco que vai pedalar para o IC1 às quatro da manhã?”.
O Pro Ressabiado estacionou o carro bem e longe da Ciclovia. Já à porta do restaurante os olhares trocaram-se e o Velopata espezinhou o que faltava;
“Tu não acabáste de fazer isto ao Velopata!”.
Entrámos e foi festa em monte.
True story.
Palavra de escuteiro e tudo, se eu tivesse ido. Em Cascais. Havia de ter sido lindo.
Abraços velocipédicos,
Velopata.
Uga-se, consegui ler o post todo a uma boa media e quase que apanhava o Quintana la a frente. So nao percebi que treco deu ao avo, quem era o puto pequeno, se o bebe vai andar de bicla com cadeirinha especial montada e se realmente morreu alguem do cafe. De resto, adorei!
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