“The bullshit piled up so fast in Vietnam, you needed wings to stay above it.”
Capitão Benjamin Willard in Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola
Durante dois dias o Velopata procurou um adjectivo que pudesse descrever, o mais sucintamente possível, o que foi participar no Tróia-Sagres 2016.
Horrível.
Na frase que introduz este texto, proferida pelo Capitão Benjamim Willard, no brilhante filme que é Apocalypse Now, basta substituir Vietnam por Tróia-Sagres e ficam com uma pequena ideia do que o Velopata passou neste último sábado, 10 de Dezembro de 2016. Ainda agora, dias decorridos após o evento, o Velopata é acordado a meio da noite pelos uivos de agonia que a Estrela Vermelha emite durante os seus pesadelos. Pobrezinha, ficou traumatizada. O Velopata levanta-se da cama e vai para perto dela, confortando-a durante uns minutos, esperando que volte a adormecer e esquecer o inferno sobrevivido.
Mas não vamos saltar etapes. A aventura foi longa; 530 quilómetros e a verdade é que só passados uns dias é que o Velopata se sentiu psico e fisicamente apto para se sentar ao computador e relatar esta aventura; tantos quilómetros de bicicleta têm o seu preço, quer nos joelhos, quer na famosa região anatómica do corpo humano conhecida como triz.
O meu reino por um sítio quente.
18:00 de sexta-feira, 9 de Dezembro de 2016.
O Velopata saíu acelerado do trabalho em direção à G-Ride para adquirir barras de energia da Sponser, suficientes para fazer marchar um regimento. Mais um sprint e seguiu para casa para preparar a Estrela Vermelha para a aventura e, se possível, bater uma sorna no sofá. Claro que a ansiedade levou a que não dormisse nada e fumasse cigarro atrás de cigarro enquanto admirava a Estrela Vermelha, agora já pronta para a aventura.
Para jantar o Velopata comeu praticamente todo um pacote de esparguete acompanhado de um pacote de gigantes salxixas vegetarianas, o que induziu protestos da Srª Velopata – “És pior que alimentar um burro a pão de ló!”. Para finalizar; uma barra de energia caseira, uma banana e um alguidar de café. E só mais um cigarro, óbvio.
Às 21:25 o Velopata estava à porta do elevador, pronto a sair.

O percurso, delineado com antecedência, era simples; seguir por Santa Bárbara de Nexe até Loulé, recolher o primeiro comparsa de aventura na Pedreira, o Pro Ressabiado, e seguir pela Tenoca até ao Purgatório (nome mais que apropriado pois tanto poderíamos seguir para o paraíso como para o inferno), onde recolheria os restantes partners in crime; o Pata Negra (outrora conhecido pelos leitores como Bafo de Pipa de Pata da Onça Negra), e um novo companheiro de pedalada, conhecido no meio velocipédico como Falso Lento. De seguida era o IC1 até Grândola e aí entrar na estrada nacional que desembocava diretamente em Tróia.
“Então, nervosinho?” – o Velopata sabia; para o Pro Ressabiado esta seria uma pedalada inesquecível, a sua maior distância alguma vez percorrida foram duzentos e poucos quilómetros.
“Estava mais durante a tarde. Agora que já estou em cima da Burra Preta e a pedalar já me sinto menos nervoso.”
O Velopata acredita que o Pro Ressabiado falava por todos. Nos dias que antecederam a aventura poder-se-ia ler o nervosismo e a ansiedade nas conversas do chat. Para além de baboseiras, que foi o que mais se escreveu.
23:00. Tropas reunidas no Purgatório. Na atmosfera conseguia-se cheirar a ansiedade e o creme gordo anti-assaduras que encharcava os abonos familiares dos ciclistas. Sem demoras a troupe fez-se à estrada, planeando uma primeira pit-stop nas bombas de gasolina do IC1, pouco antes da saída para São Marcos da Serra.
Na primeira paragem do dia a opinião era unânime; fomos asnos por nos equiparmos para ir pedalar no Ártico quando, na realidade, a temperatura até nem estava assim tão má. Alguns dos GPS marcavam 14 e 15 ºC. Nestes termos, a paragem serviu principalmente para arrefecer a temperatura do motor.
Seguimos viagem tranquilamente; os muito poucos enlatados que nos ultrapassaram fizeram-no sempre com o maior respeito. Ou medo – quem é que se quer meter com quatro loucos a pedalar a altas horas da noite?!?! Destaque para os inúmeros camiões que seguiam em sentido contrário em direção aos algarves; com tanta luz e luzinha a decorar a parte frontal dos camiões, o Velopata não conseguiu deixar de pensar nos Transformers da sua infância. “Se o Michael Bay viesse aqui a pedalar com a malta e visse isto estava já armado um armagedão tal que até as bicicletas explodiam!” – pensou e sorriu interiormente. Não o partilhou com os colegas pois com certeza iriam olhar o Velopata de soslaio e pensar “Que geek!”.
Quem conhece o IC1 sabe que se trata de uma estrada praticamente plana, com pequenas subidas que em nada se comparam a uma montanha. Mas nada podia preparar o grupo para o choque que iria sofrer aquando da passagem por um dos muitos vales – o calor que os motores sentiam foi substituído por um frio gélido-ártico-polar. Tudo a bater o dente qual Michael J. Fox velocipédico. Até o Pro Ressabiado, que por norma no pico do inverno se queixa que está calor, se viu forçado a colocar as luvas de inverno.
O frio era tal que a chegar a Ourique, avistámos um típico tasco ainda com a esplanada montada e luzes acesas e decidimos parar.
O Velopata não quer ser preconceituoso mas aquele tasco parecia saído de um filme de terror de série B, passado no oeste americano onde pululam os rednecks fruto das relações sexuais entre parentes, geneticamente próximos demais para a progenia ser saudável. O senhor que nos atendeu era uma espécie de Quasimodo alentejano; corcunda e com o que parecia serem troçolhos gigantes na parte de baixo de ambos os olhos. Dedos das mãos tortos das artroses. O Velopata confessa que teve muitas dificuldades em perceber o que ele tentava comunicar, mas lá se conseguiu que nos servisse cafés e águas. A um canto, uma mulher nos seus quarenta e poucos, que se manteve sempre em silêncio, fumava e bebia cerveja. Quando sorriu percebemos porque nunca falou; a sua boca era uma espécie de oásis dentário – apenas um dos seus dentes apresentava sinais de vida. Mas espero que se algum leitor os conheça não se sinta ofendido – foram todos muito simpáticos e um dos transeuntes do tasco, provavelmente camionista, avisou; nos próximos oitenta quilómetros não existia nada aberto onde pudéssemos aquecer, comer ou descansar.
Recebendo votos de boa sorte, pelo menos era o que o Quasimodo de Ourique parecia querer comunicar, seguimos viagem e voltámos ao frio e escuridão do IC1, sempre em amena cavaqueira e um excelente ambiente no grupo. Sentíamo-nos os heróis de um conto épico. E quando a confiança é muita e a descontração se instala, as merdas acontecem.
O primeiro cagaço da noite – o Pata Negra ia lado a lado com o Pro Ressabiado na conversa quando deu por ele a enfiar-se na cratera do meteorito que extinguiu os dinossauros. Foi uma porrada tão grande que ecoou pelo vale que atravessávamos. Os cães das quintas na redondeza começaram a ladrar. Fomos forçados a parar – já esperávamos os dois pneus furados e qualquer coisa partida na sua Specialicoiso. O que teria sido um belo sarilho de resolver. Apesar de tudo a sorte bafejou-o; nenhum dos pneus furou, nada se partiu e não tivemos de raspar com martelo e escopro o Pata Negra do raile – que era onde ele ainda estaria a esta hora se… Apenas as mudanças ficaram a necessitar de um pequeno ajuste, tendo sido resolvido na paragem seguinte, num dos muitos cruzamentos para nenhures.
De seguida foi a vez do Falso Lento e do Velopata. Uma outra cratera, provavelmente anterior à extinção dos dinossauros e lá fomos ambos. O Falso Lento bateu mas passou sem problemas, já o vosso amigo Velopata mandou tal cacetada que as fibras carbónicas da Estrela Vermelha abanaram por todo o lado. Instantes depois o Pata Negra grita para o Velopata;
“Deixáste cair qualquer coisa lá atrás!”
Paramos novamente e o Velopata percebeu que uma das suas luzes traseiras, presa na sua bolsa de selim e poupada para utilização apenas em caso de emergência de falha da principal, tinha desaparecido. O Pro Ressabiado ainda voltou atrás; procurar uma luzinha de 5 centímetros, desligada e numa estrada sem luz, seria tarefa mais hercúlea que encontrar uma moça virgem na Casa dos Segredos.
“Caga nisso! Não a vamos conseguir encontrar e provavelmente também não a ia usar. Isso é luz barata logo não se perde nada! Não vamos é ficar aqui parados ao frio! Siga!” – o Velopata descansou os companheiros e seguiu-se viagem.
Como não há duas sem três, um terceiro cagaço ainda nos aguardava. O Velopata e o Pro Ressabiado seguiam na frente, lado a lado, quando se aperceberam de uma gigante forma negra na berma da estrada – um pneu gigante de camião ali tombado. Por milagre de Santo Joaquim Agostinho é que nenhum de nós se esbardalhou. Se algum de nós viesse na berma, de certeza que não teria tido tempo de se desviar.
“Merda mais os Transformers!” – pensou o Velopata.

Se o São Pedro se estava a revelar um tipo porreiro até então, o momento chegou em que decidiu arreganhar os dentes e mostrar que com ele não há pão para malucos. Se queriam uma aventura, ó meus amigos, não se fazei rogados!
E foi assim que o grupo deu por si mergulhado num nevoeiro selvagem. Para além de a visibilidade se ter reduzido para valores quase negativos… A humidade! Em poucos quilómetros a troupe ficou encharcada dos pés à cabeça. O que aliado ao frio que se fazia sentir tornou aqueles quilómetros que nos separavam de Grândola um verdadeiro desafio à mente e ao físico. A dada altura o Velopata baixou a cabeça para se aperceber que o chapéu que usa por baixo do capacete já pingava como se à chuva estivesse.
Gelados, molhados e com os primeiros sintomas de fadiga a instalarem-se, o grupo passou um mau bocado – apenas procurávamos um sítio quente mas o senhor no tasco do terror razão tinha – não havia nenhum estabelecimento aberto, nem uma bomba de gasolina que fosse, nos 80 quilómetros de nevoeiro que percorremos e que aparentava adensar-se cada vez mais. Com todos estes factores a trabalhar em conjunto, o grupo sofreu a primeira baixa do dia. O Falso Lento, já com cento e muitos quilómetros nas pernas, começou a ficar para trás cada vez que o ritmo acelerava ou o grupo apanhava uma ligeira subida.
Como bom samaritano que é o Velopata descaíu no grupo para tentar dar uma força ao Falso Lento;
“Então, como é que isso vai?”
“Já fui. Mas não esperem por mim, não quero atrapalhar ninguém.” – pela sua expressão facial percebia-se que não estava mesmo nada fácil para o Falso Lento.
“Que tal é essa? Eu nunca fui à tropa mas isto é tipo os fuzas – ninguém fica para trás!” – tentar motivar alguém que está prestes a atirar a toalha ao chão não é tarefa simples.
“Não, sigam vocês. Eu não vou conseguir aguentar isto tudo mesmo… É como te disse, até Tróia ou mesmo Sagres devo aguentar mas depois disso…”.
“Consegues sim, a malta vai manter sempre um ritmo baixo. É só uma questão de controlar ali o Pro Ressabiado.”
“Eu nem tenho treinado. Devo ter feito aí uns 250 quilómetros no total dos últimos dois meses.”
Com esta última afirmação o Velopata perdeu os argumentos. E ficou a matutar que das duas uma; ou o Falso Lento era maluco por se vir meter numa aventura de mais de 400 quilómetros sem treinar ou então era um gajo com uns great balls of fire. Ou great balls of carbon.
O Velopata regressou para junto do Pro Ressabiado e do Pata Negra avisando;
“O Falso Lento já vai nas lonas. É melhor entrar em Grândola e procurar qualquer tasco aberto para podermos descansar, comer, aquecer e quem sabe, pode ser que ele melhore.”
Decisão unânime – virar para Grândola e procurar um estabelecimento aberto às 05 da manhã. De preferência que não fosse uma danceteria que, pelas horas, deveria ser o único tipo de estabelecimento aberto, se é que tal existe em Grândola.
Sem saber que direção seguir avistámos uma viatura da GNR em patrulha à qual fizémos sinal. Honestamente, ou os senhores agentes da autoridade estavam alcoolizados ou… Foi necessário quase atirarmo-nos contra a sua viatura para que parássem. Pedimos indicações – parece que uns metros à frente de onde tínhamos saído do IC1 existia uma bomba de gasolina com café aberta. Merda. Como de costume o grupo optou pela ideia contrária à sugestão do Velopata e seguiu pelo interior de Grândola para só depois voltar ao IC1. Resultado; não houve bomba de gasolina para ninguém.
Uma nota para uma situação no mínimo sui generis que aconteceu ainda no interior de Grândola. Um enlatado BMW de alta cilindrada ultrapassou-nos a alta velocidade. O pendura, cidadão de etnia africana, colocou a cabeça de fora e xingou-nos à grande. O que nos gritou o Velopata não pode aqui escrever pois poderão existir menores a ler. Trocaram-se olhares estupefactos. Ás 5 horas da manhã, sem ter feito nada para o atrapalhar, qual seria o problema mental daquele gajo? Pelo menos a coisa ficou por ali e seguimos caminhos diferentes.
Continuávamos gelados, molhados e já a sentir a larica. Restava parar onde a estrada o permitisse. Avistámos uma pequena clareira alcatroada fora da estrada que dava acesso a uma qualquer instalação vedada pertencente ao estado português. Sem nenhuma objeção de nenhum membro do grupo decidimos parar.

E foi neste momento que a primeira baixa do grupo se concretizou efetivamente. Sabendo ser difícil manter o ritmo a que se seguia, o Falso Lento avisou que ia arrancar à frente pois mais cedo ou mais tarde, nos 60 quilómetros que faltavam até Tróia, o apanharíamos.
A verdade é que o Velopata e restante troupe sabe agora que o Falso Lento é uma espécie de Walking Dead, só que em Cycle. The Cycling Dead. Desconfia-se que tenha genes de fénix ou outra criatura com poderes regenerativos pois a verdade é que só o voltámos a ver já perto de Porto Côvo. Mas a seu tempo lá iremos, não vamos saltar etapes.
O Velopata, o Pro Ressabiado e o Pata Negra, após o que foi possível recompor, arrancaram para os últimos 60 quilómetros que os separavam de Tróia.
Seguiam o Pro Ressabiado e o Pata Negra na frente, o Velopata logo atrás quando o Pata Negra se deixou descaír e colocando-se ao lado do Velopata pediu;
“Passa para a frente e fala com o Pro Ressabiado.”.
“Uai, porquê?”.
“Vai e fala com ele.”.
“Mas o que é que tem?”.
“Olha lá bem para a cara dele.”.
O Velopata aproximou-se do Pro Ressabiado e percebeu.
A face do Pro Ressabiado era um misto de drogado, bêbado, morto-vivo e sem-abrigo. Os olhos já em modo Pal-Plus. A boca de lado, numa mistura de trombose com acidente vascular cerebral.
“Eh lá! O que é que tu tens homem?”.
“´Tá-me a dar o sono. Mas não há crise desde que pedale de pé.”.
“Vais fazer estes sessenta quilómetros que faltam de pé?”.
“Não há crise, ´tá-se bem!”.
Continuámos até ao momento em que o Pro Ressabiado ia tendo a primeira saída de estrada. O homem estava mesmo a adormecer em cima da bicicleta. Uma e outra vez ziguezagueou na estrada. Preocupados o Velopata e o Pata Negra observavam todas as pedaladas em falso do Pro Ressabiado. Até que se tornou insustentável;
“Temos mesmo de parar para tu beberes um café.” – a ultima coisa que o Velopata queria era ver um companheiro espalhar-se por adormecer em cima da bicicleta. Ser esmagado por um enlatado BMW ou esbardalhar-se contra um pneu gigante de transformer é de homem de barba rija. Agora adormecer em cima da bicicleta…
“Não, eu ´tou bem.” – retorquiu o Pro Ressabiado.
“Não ´tás nada pá! Temos mesmo de descobrir um sítio aberto para beberes um café!” – rematou o Pata Negra.
“Bah, o café a mim não me faz efeito” – quem o conhece sabe, o Pro Ressabiado é teimoso.
“Olha eu tenho um truque que usava quando fazia viagens a conduzir enlatado para o Algarve, quando vim para cá estudar.” – o Velopata tinha uma ideia meio louca que podia resultar, no entanto, sabia de antemão que seria contestada pelo Pata Negra.
“Fuma um cigarro. Sabe-se que a nicotina aumenta a concentração. Eu usava esse truque, quando ficava com sono fumava um cigarro e parecendo que não, o sono passava.” – o olhar de reprovação do Pata Negra trespassou o Velopata como uma seta.
“Onde é que já se viu fumar um cigarro para acordar?!?!” – teimoso, o Pro Ressabiado não queria ceder, mesmo quando voltou a ziguezaguear e quase sair da estrada.
“Nem é tarde nem é cedo, podemos parar ali naquele cruzamento que tem luzes e fumamos um cigarro. Vais ver que resulta!”
O Pata Negra manteve-se em silêncio e posteriormente aproveitou para a foto reprovadora equanto o Velopata acompanhou o Pro Ressabiado com um cigarro.

O cigarro fez seu efeito sobre o Pro Ressabiado que pareceu acordar. Ainda com as roupas húmidas ali parados ao frio, este logo se fez sentir como lâminas na pele. Voltámos à estrada quando o Pata Negra irrompeu em gargalhadas;
“Olhem ali! AH! AH! AH!”.
A cerca de 300 metros de onde tínhamos parado, uma bomba de gasolina. Pelos painéis luminosos parecia aberta. Que asnos. Só não fomos ainda mais asnos porque na realidade, após tantos quilómetros que tivemos para aprender, a bomba de gasolina estava… Fechada, pois claro. Um letreiro indicava que abriria portas pelas sete horas da manhã.
Em tempos idos, quando o Velopata era um embrião velocipédico, visitou Tróia com a sua família. Óbviamente o Velopata nem memórias nubladas tem. Faltavam perto de seis quilómetros para o grupo chegar ao quilómetro zero do Tróia-Sagres quando o Velopata comunicou as suas intenções aos comparsas;
“Epá, já me estou a babar a pensar em bolos e café! E croissants de chocolate! Será que os há em Tróia?” – um Velopata salivante e a entrar em modo alarve.
“Man, olha que em Tróia não há nada!”. – o Pata Negra enfiou uma facada no estômago do Velopata.
“Como assim?” – a vista do Velopata começou a ficar nublada. Por momentos pensou que o nevoeiro tivesse regressado.
“Então, em Tróia só vamos parar para fotos, descansar um bocado e arrancamos.”
“Mas não há um café, uma pastelaria, padaria que seja?”.
“Não. Aquilo é um desterro. Vamos parar sim no regresso, aquela bomba onde passámos há pouco já deve estar aberta.” – rematou o Pro Ressabiado.
“Mas especialmente tu precisas mesmo de beber um café!”. – como se de algo servisse o Velopata insistia.
“Eu já estou bem!”.
Era oficial e não era nevoeiro. Os olhos do Velopata estavam mesmo marejados de lágrimas pois ainda eram 06:15 da manhã e isso significava que teríamos pela frente mais 45 minutos de pedalada ao frio e sem chop-chop ou café à vista.
Em jeito de resposta começaram a passar em sentido contrário os primeiros participantes do Tróia-Sagres, recebendo sempre com saudações de “Bom dia!”, e “Vão no sentido contrário!”, os três aventureiros. Ao longe avistámos os primeiros aglomerados de participantes no passeio e decidimos que seria hora de fazer uma pausa e chamar a este local o nosso quilómetro zero do Tróia-Sagres 2016. Curiosamente, do Falso Lento nem sinal. Para quem estava mal…

Tirem-me deste filme.
É chegado o momento que o leitor tanto aguardou. A experiência do Velopata neste famoso passeio que é o Tróia-Sagres, uma espécie de Meca velocipédica (ou Fátima se preferirem), do pelotão amador português.
Para a troupe velopatóide o plano era simples (não é sempre?); encontrar um grupo com pedalada confortável e seguir na roda, passando uma ou outra vez pela frente para não ficar mal na fotografia. Parece fácil, não é? Nada poderia estar mais longe do exequível.
Um grupo de vinte unidades passou lançado e claro está que o até então bem comportado Pro Ressabiado começou a ressabiar, lançando-se na perseguição. O Pata Negra e o vosso amigo Velopata soltaram os bofes mas conseguiram embrenhar-se no grupo, tentando não descolar. Na frente, um gajo com metro e meio de altura carregava que nem um louco.”Para quê tanta pressa; será que algum deles roubou alguma coisa em Tróia?”; foi um dos pensamentos que assolou o Velopata. Foi neste primeiro grupo que o Velopata começou a temer o pior; razias, gajos que travavam sem necessidade, gajos que se intrometiam na roda ao ínfimo espaço que se criava entre rodas, outros que não conseguiam pedalar em linha reta, ou seja, o Velopata nunca viu tanta violação das regras básicas de andar em pelotão como naqueles primeiros 20 minutos que demorámos até parar na bomba de gasolina que finalmente se encontrava aberta.

A mais que merecida pausa estava feita quando um outro grupo de 30 a 40 unidades passou. A troupe velopatóide decidiu colar neste grupo que aparentava um ritmo mais confortável do que o grupo anterior, liderado pelo tresloucado meia-dose.
E a porca torceu o rabo a sério.
Para começar o São Pedro tinha ainda uma surpresa reservada; a absurda força do vento de sueste que se fazia sentir. Se alguém perdesse a roda do ciclista à sua frente, no espaço de um quilómetro facilmente perdia dois. Num determinado momento, o Velopata ficou para trás do grupo e deu por si a fazer uma descida a 20 km/h, para o leitor perceber que não se trata apenas de exagero dramatúrgico.
Depois, as personagens. Ó Santo Joaquim Agostinho, as personagens!
Que um homem adulto vestido de licras apertadas, mesmo estando em forma, parece só ridículo, já todos sabem. Agora homens com panças que roçam o tubo superior do quadro, calçados com meias de compressão, que em alguns casos, chegam acima do joelho, mas que raios pensam que isto é? Um espectáculo de burlesco no Moulin Rouge? Algúem vai dançar o Can-Can? E há ainda os gajos das ceroulas. Ceroulas?, pergunta o leitor. Sim, ceroulas. É uma das novas modas velocipédicas, equipamentos de uma marca que o Velopata não pode referir, por óbvias represálias e processos judiciais que pode sofrer, que não são feitos de lycra e sim um material pijamóide qualquer que dizem ser 100% carbono e aero carbono. Parece que roubaram o pijama velho do avô e fizeram uns cortes para aquilo se assemelhar a um equipamento de ciclismo.
E o comportamento à “estou-me a cagar, vou chegar antes de ti e vençer esta prova”? O Velopata viu um ciclista de etnia africana, que é algo que o Velopata gosta sempre de ver tendo em conta que este desporto sempre foi um pouco trumpiano, que vestido com os tais equipamentos ceroulo-pijamóides soltava uns urros selvagens e se lançava ao ataque. A foto só não ficou muito bonita pois os ataques duravam dez segundos sendo logo absorvido pelo grupo. “Mas que autocolante raro!”, pensou o Velopata.
Era a loucura; razias, ciclistas que não sinalizavam as suas intenções, travagens bruscas sem razão aparente. O Velopata tem a certeza que existe mais respeito velocipédico numa batalha pelo sprint entre as equipas do Mark Cavendish e do Nacer Bouhanni, do que existia no grupo onde seguia.
O que acontece quando se juntam 6500 ciclistas que desejam todos ser o macho alfa da matilha?
O Velopata encontrava-se rodeado de desconhecidos. Conseguia ver lá na frente o Pro Ressabiado ocupando o quarto lugar do grupo, quando o Pata Negra, que tinha ficado mais para trás no grupo, se chegou à frente colocando-se lado a lado com o Velopata;
“Então que cara é essa?” – questionou o Pata Negra.
“Que stress pá! Mas esta gente não sabe andar em pelotão?”.
Fomos interrompidos por uma travagem brusca do gajo à nossa frente só porque lhe apeteceu dizer olá a um dos muitos amigos parados na berma.
“Devias ter visto o David Rosa o ano passado. Sabes quem é?”.
“Sim, é profissional.”.
“Cada vez que alguém se aproximava, ele gritava logo – Sai já daqui!”.
“Como eu o entendo. Mas acho que não vou fazer muitos amigos assim.”.
E foi neste momento que o Velopata ouviu o som que nunca mais quer ouvir na vida. Imediatamente atrás do Velopata e do Pata Negra chegou o frenético som de uma roda da frente a roçar numa roda de trás. Seguiram-se gritos de pânico e antes do silêncio sepulcral que se instalou, o som do amarfanhar de carbono, metal, carne, pele e osso. O Velopata nem olhou para trás.
“Dassss! Ainda nem há segundos eu estava ali atrás…” – o Pata Negra tinha terror estampado no olhar.
Mas se o leitor julga que este acidente incutiu algum sentido de cautela ou responsabilidade no grupo, agora com muito menos ciclocoisos, porque na realidade ciclistas a sério não se comportam nestes modos, engana-se.
E há um outro factor de stress que o Velopata ainda não referiu.
Os enlatados.
É de esperar que um evento velocipédico com esta magnitude atraia muita bicicleta de todos os formatos e feitios para a estrada. O que o Velopata não esperava era a proporção; para cada ciclista parecia existir um enlatado de apoio. Agora juntem a todos estes enlatados, os enlatados civis que nada tinham a ver com o passeio, que se deslocavam em ambos os sentidos da estrada – bem vindos ao armagedão. O que não deixa de ser caricato pois se os ciclistas se queixam de que os enlatados não os respeitam e passam razias… Não seria de esperar que os enlatados que dão apoio a ciclistas mostrássem um bocadinho mais de respeito? Fica a dica para refletirem sobre o assunto.
Para além das razias de ciclocoisos o Velopata levou um sem número de razias de enlatados. Viu-se forçado a travar a fundo em algumas subidas, pois os grupos de ciclocoisos lá na frente ocupavam toda a estrada e pedalando mais devagar, não deixavam os enlatados passar, gerando assim engarrafamentos. Um momento houve em que, sem razão aparente, um ignóbil decidiu travar a fundo não dando tempo a uma pobre ciclista que vinha atrás de fazer pouco mais que esbardalhar-se contra ele. Seguia uma carrinha, a par do pacóvio que provocou a desgraça, que também travou bruscamente e foi por milagre que o Velopata não pintou a traseira da carrinha com uma côr vermelha bem vistosa. A última coisa que o Velopata viu foi o Pata Negra parado na berma a verificar a integridade da sua montada e a pobre moça agarrada à clavícula. Onde quer que estejas, moça valente, espero que estejas bem. Ainda mal recompostos de tanta estupidez foi a vez do Pro Ressabiado quase embater contra um ciclocoiso que parado na berma se lançou à estrada sem olhar.
“Mas será que esta gente é estúpida? Seja de carro, mota ou trotinete, quando te fazes à estrada é de bom senso olhar para trás, não?” – o Velopata começou a perder a paciência para tanto energúmeno na estrada.
“Pois…” – acenou retóricamente o Pro Ressabiado.
Com todas estas emoções e a paragem forçada do Pata Negra, que viémos a saber depois tinha levado uma porrada na roda de trás do energúmeno, a troupe velopatóide perdeu o comboio do grupo onde estava inserida. Começaram as primeiras rampas, que apesar de pouco inclinadas, começam a quebrar e a desmontar os grupos. Finalmente se podia respirar um pouco de alívio.
“Malta, isto não pode ser assim. Não ´tou para fazer 200 quilómetros de peito ao vento! Temos de colar num outro grupo já!” – o Pro Ressabiado começava novamente a fazer o que ele tão bem faz, ressabiar.
“Homem, tem calma! Estamos quase a chegar aos nossos 300 quilómetros, por mim era parar no próximo tasco que encontrármos.” – retorquiu o Velopata.
“O Velopata tem razão!” – confirmou o Pata Negra.
Como castigo por se estar a discordar do Pro Ressabiado o grupo entrou numa estrada virada a sueste que se tornou um suplício. O vento era tal que uma descida se transformou numa escalada do Monte Evereste.
“Estão a ver? Eu não quero chegar a casa domingo. Quero chegar ainda hoje, sábado!” – o Pro Ressabiado sabe sempre como motivar as tropas.
Seguimos alternando na frente para que se pudesse manter um bom ritmo sem ficar toda a troupe escalfada. Pelo grupo passou uma ambulância lançada. Depois outra. Trocaram-se olhares em silêncio. Na estrada à frente o armagedão velocipédico devia continuar.
Carregávamos a bom ritmo quando o Pro Ressabiado, que seguia na frente como o fez durante quase toda a aventura, gritou;
“Olhem lá quem ali vai!”.
Uma fénix renascida das cinzas, uma espécie de morto-vivo, mas mais vivo que morto.
Era o Falso Lento.
E ia lançado liderando um grupo onde um ciclocoiso estava equipado à CCCP que, para quem não sabe, era o equipamento oficial da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas. Segue-se uma transcrição da conversa que o Velopata ouviu entre o Falso Lento e o ciclocomuna;
“Então amigo, você é mesmo fã, não é?” – perguntou o Falso Lento.
“Sim, sempre! No tempo da União Soviética é que se faziam atletas! E sociedades justas!”.
“Claro, claro. Por isso é que você ainda não trabalhou uma única vez aqui na frente e tem vindo sempre na roda!”.
Incha! Embrulha a viola no saco e vai buscar! Parafraseando a gíria futebolística isto foi um golaço de cueca ao guarda-redes. Sem resposta o ciclocomuna fez cara de poucos amigos e deixou-se ficar para trás.
Com ritmo reduzido o grupo regozijou por estar novamente completo. O Falso Lento contou como tinha seguido até Tróia, esperou, não apareceu ninguém e decidiu fazer-se à estrada. Esperáva-nos a qualquer momento. E assim chegou a marca dos trezentos quilómetros, coincidindo com um tasco na berma da estrada, já perto de Porto Côvo, onde os 4 cavaleiros do apocalipse tróiano puderam parar com o objectivo de relaxar, dar ao serrote e claro, delinear o plano para os próximos cem quilómetros.

Já de estômagos carregados, pernas descansadas e no caso do Velopata, pulmões atestados de nicotina, a troupe viu passar os Bohemia Team, comparsas de pedalada nos algarves, e num ápice já o Pro Ressabiado montava a sua Burra Preta e exclamava;
“Rápido, vamos colar neste grupo!”.
Mas ao contrário do mentecapto que anteriormente se tinha atirado para a estrada sem olhar, o Velopata olhou. Um dantesco circo de enlatados e ciclocoisos estava muito perto. Claro está, do mesmo modo que o Velopata teve de esperar que a companhia passasse, também a troupe velopatóide teve de esperar pelo Velopata. Minutos depois, foi um Velopata já com os bofes de fora e um pulmão a sair pelo canto da boca a implorar oxigênio, que se juntou à sua troupe.
“Fizéste-nos perder o comboio dos Bohemia. Agora, para castigo, passas para a frente e trabalhas tu ao vento!” – lá estava o Pro Ressabiado a ressabiar. O sentido de honra do Velopata impediu-o de protestar, já tanto tinha trabalhado o Pro Ressabiado na frente.
Seguiu-se viagem até ao ponto em que o Falso Lento avisou que não iria aguentar muito mais com o grupo e nos encontraria em Sagres, nem que tivesse de fazer das tripas, pernas. Ainda assim, trabalhou na frente durante vários quilómetros até não aguentar mais e falecer uma terceira e quarta vez. O Velopata só encontra uma palavra para descrever este novo amigo: respect! Enfrentar um desafio deste calibre com tão pouco treino nas pernas só prova que o poder mental deste moço não está ao alcance de todos. Mesmo que as pernas não concordem.
Finalmente reduzidos a três elementos a troupe velopatóide apanhou boleia de um outro grupo, este liderado pelos Duros do Pedal, equipa oriunda de Massamá que o Velopata já conhecia aquando do Granfondo Serra da Estrela. Os Duros do Pedal cavalgavam com vários elementos em alternância na frente. O que significa ter de acompanhar com, não um mas os dois pulmões a saír pelos cantos da boca, implorando oxigenação. O Velopata perguntáva-se quanto mais tempo conseguiria aguentar o ritmo alucinante quando foi salvo por uma descida. Deixando alguns milímetros para a roda que seguia à sua frente o Velopata viu-se ser ultrapassado por um ciclocoiso todo enlicrado a rigor, que pedalava a alta velocidade… Uma dobrável de roda 20″. Ou o gajo era louco ou estava sob efeito de alguma droga. A sensação que se tinha, ao olhar para este outro autocolante raro e dada a velocidade, é que a qualquer momento a bicicleta se ia desconjuntar e o marafado se ia escaqueirar redondo no alcatrão. Graças aos deuses, ou os senhores das Estradas de Portugal, a estrada voltou a inclinar e o alucinado da dobrável ficou para trás.
Nesta fase o Pata Negra passou para a frente e para tristeza do Pro Ressabiado, tentou estorvar o ritmo cavalgante. Sentindo-se ameaçados, alguns elementos dos Duros do Pedal protestaram com o Pata Negra. Para perceberem que não se devem meter com nenhum dos membros da troupe velopatóide, quis o Santo Agostinho que um destes Duros do Pedal saísse de estrada e, por milagre, não testásse a eficácia de uma cerca de arame farpado que delimitava uma propriedade privada. Seguiu-se histeria, guinadas, travagens abruptas e o Velopata, o Pro Ressabiado e o Pata Negra ficavam novamente sozinhos enquanto os Duros do Pedal ficavam para trás, prestando auxílio ao seu elemento caído.
“Antes sózinhos que mal acompanhados!” – exclamou o Velopata para os comparsas, sendo brindado com o olhar reprovador do Pro Ressabiado.
Pouco antes de chegarmos a Odeceixe, perto dos 350 quilómtetros pedalados, a troupe dedidiu fazer a que seria a última paragem antes de Sagres. Um monumental engarrafamento de bicicletas e enlatados na estrada forçou essa paragem. E aqui o Velopata aproveita para chamar a atenção de mais um pormenor apocalíptico deste Tróia-Sagres. As filas intermináveis. Se por um lado é bom para os negócios e tascos, que neste dia devem esgotar stocks de água, cola, cerveja, pão e presunto, para a paciência de quem já tem tanto quilómetro nas pernas não é nada simpático ter de andar à luta pela atenção de quem está atrás do balcão.
Já refeita do esforço mental e psicológico sofrido para sobreviver até este ponto da aventura, a troupe arrancou, sendo de imediato ultrapassados por uma ambulância em modo Rally de Portugal e novamente trocámos olhares em silêncio. Como as principais subidas do percurso já tinham feito o seu estrago, o Velopata sabia que a partir deste quilómetro os ciclistas se encontravam dispersos pela estrada e o perigo de ajuntamentos e catástrofes ósseas ou carbónicas se encontrava reduzido a zero.

Motivados pela ausência de ciclocoisos, o Velopata e companhia aceleraram para percorrer rapidamente os últimos 50 quilómetros que os separavam de Sagres. O objectivo estava fixo na mente de cada um; chegar a Sagres antes do anoitecer.
Descontraídos e a bom ritmo segui-se até Aljezur. E quis o destino que a troupe velopatóide ficasse reduzida a duas unidades, o Velopata e o até então virgem nestas andanças das longas distâncias, Pro Ressabiado. Para além de há muitos quilómetros atrás termos perdido o Falso Lento, perdíamos agora o Pata Negra que, com as suas dores no joelho, tinha já tirado senha para o hospital velocipédico do além e apenas o seu corpo continuava conosco, pedalando ao relantim.
O Pro Ressabiado ficou para trás tentanto dar algum apoio moral ao Pata Negra. O Velopata seguiu caminho sozinho, procurando um tasco aberto onde pudesse novamente dar ao serrote e carregar baterias para os últimos quilómetros até Sagres.
Mas ainda assim, apesar dos muito poucos ciclocoisos que circulavam na estrada, estes ainda tinham algumas supresas reservadas ao Velopata.
O Velopata seguia só, perdido nos seus parvos pensamentos quando se desviou ligeiramente para a direita na sua trajetória, devido a uma cratera gigante no centro da faixa. Então não é que nesse mesmo instante um ciclocoiso sem nenhuma noção de perigo decidiu ultrapassar o Velopata pela direita?!?!?! Por escassos centímetros aquele psicopata não provocou um encontro imediato em primeiro grau entre os três; o Velopata, ele e o alcatrão. Tendo em conta a velocidade a que se seguia, o Velopata calcula que a esta hora ainda estariam os funcionários de limpeza da câmara de Aljezur a esfregar pedaços de Velopata e psicopata irresponsável do asfalto.
Uns quilómetros à frente, ainda mal recomposto do cagaço anterior o Velopata seguia novamente pelo centro da faixa, pois a direita da faixa de rodagem parecia ter sido em tempos um campo de minas, quando ouviu uma voz seca em ordem de comando;
“Afásta-te!”.
Como era impossível desviar-se o Velopata levou uma razia do que pareciam ser vários ciclocoisos de uma equipa qualquer (equipavam com cores bem foleiras), lançados. A lata daqueles gajos. Se o Velopata tivesse os seus companheiros por perto e sentisse as costas quentes com certeza teria retaliado alguma blasfêmia. No entanto, como o Velopata tem pouco jeito para a porrada, optou por ficar calado e resmungar para dentro feito Mutley das Wacky Races.
Conhecendo a estrada de antemão o Velopata sabia que só na Carrapateira seria possível encontrar um tasco aberto. E foi poucos metros antes de chegar ao famigerado troço de pavê da Carrapateira que o Pro Ressabiado apanhou o Velopata;
“Então, como é que está o Pata Negra?”.
“Está morto. Já falei com o meu irmão que o vem buscar a Sagres. Já nem para regressar a Faro ele aguenta.”.
E foi reduzida a dois elementos que a troupe velopatóide fez a última paragem antes de Sagres. Tanto o Velopata como o Pro Ressabiado devoraram duas fatias de bolo que forneceu aquele pico de energia, necessário para rapidamente chegar a Sagres e dar por completa a segunda fase da aventura. Apenas se colocava agora uma questão; iria o terrível vento de sueste manter-se e tornar o regresso a Faro tarefa ainda mais hercúlea?
16:00. Em Sagres, chegavam a conta-gotas os vários ciclistas e os muitos ciclocoisos que participaram no evento. O Velopata conhecia uma pastelaria muito porreira que ficava fora da confusão e permitia verificar quem chegava. Assim poder-se-iam reagrupar com o Pata Negra e posteriormente o Falso Lento que mais uma vez, tinha regressado do além velocipédico e carregava como se nada se tivesse passado.

Terminada a parte do percurso correspondente ao Tróia-Sagres, no cérebro do Velopata ecoavam as proféticas palavras do Rei do Barranco, ditas meses antes;
“Tu não vais gostar do Tróia-Sagres. Aquilo é confusão em monte.”.
O segmento proibido é o mais apetecido.
Despedimo-nos à Bonga, com lágrimas no canto do olho, dado o companheirismo e sofrimento ultrapassados em conjunto. Para o Velopata e o Pro Ressabiado restavam agora os 110 quilómetros que os separavam de Faro e Quarteira, respetivamente.
Por sorte o São Pedro não foi uma menina caprichosa e o vento, apesar de se manter contra, reduziu a sua intensidade de modo que o sofrimento no regresso foi pouco ou quase nulo.
A N125 foi feita em modo contra-relógio sendo o Pro Ressabiado aquele que mais tempo passou na frente. Perto de Portimão, num dos poucos momentos em que o Velopata liderava, o Pro Ressabiado gritou;
“Ei, onde é que vais?”.
“Uai? Então? Para onde é que havia de ir? Para Faro!”.
“Não pá! Por onde é que vais?”.
“Pela N125. Passamos aqui a ponte em Portimão e…”.
“Mas isto é uma via reservada a automóveis! Não podemos passar na ponte!”.
“Via reservada a quê?”.
“Via reservada a automóveis! Não podemos andar aqui!”.
O Velopata ficou a matutar naquela última afirmação e continuou em tom jocoso;
“Mas eu já passei aqui tantas vezes… Ah, então deve ter sido por isso que na última vez que aqui passei vários carros me buzinaram. E eu que julgava que eram só parvos… Mas afinal o que é isso?”.
“Isso o quê?”.
“Uma via reservada a automóveis.”.
“´Tás a gozar não estás?”.
“Não, até porque isso não existe. Não sabes que as bicicletas têm o direito universal a pedalar por onde e bem lhes apetecer?”.
O Pro Ressabiado brindou o Velopata com uma poker face.
“E tu viste bem aquele sinal de trânsito? O boneco lá nem se parece com uma bicicleta, muito menos com uma das nossas. Podemos sempre alegar que julgávamos que o trânsito só estava proibido às pasteleiras! Ei, na América isto resultava!”.
“Deixa-te de parvoíces e vem mas é para a berma. Passamos de fininho e pode ser que não tenhamos chatices.”.
“De fininha!”.
“Hã?”.
“De finhinha. O que querias dizer é que passamos de fininha! Não é o que chamam às nossas bicicletas?”.
“Está calado e vem para a berma pá!”.
“Não te preocupes! Se aparecer a bófia a malta fala em estrangeiro e não há-de haver problema!”.
E não houve.
Não esqueçendo o ditado popular; “O segmento do Strava proibido é o mais apetecido”, o Velopata e o Pro Ressabiado rapidamente passaram a via reservada a enlatados.
Seguíamos lançados quando uma carrinha se colocou ao nosso lado. Já se preparavam para ser xingados e provavelmente xingar de volta quando são surpreendidos com um “Força nisso! Carreguem nesses pedais!”. O Velopata nem percebeu de quem se tratava, o Pro Ressabiado é que confirmou ser uma amiga batráquia que regressava também ela do Tróia-Sagres. Podem ler o seu relato, bem diferente do Velopata, aqui.
Mas a aventura ainda estava longe de terminar. Primeiro foi o GPS do Velopata que, por azelhice do próprio, ficou sem bateria e seria impraticável colocá-lo a carregar em andamento. Depois foi a luz frontal que pifou mas por sorte, foi apenas o cabo de ligação à bateria que se soltou. Quem já fazia cara de poucos amigos em cada uma destas paragens forçadas era o Pro Ressabiado que… Bem… Começou a ressabiar.
Uma pit-stop em Odiáxere, onde o senhor da tasco ficou na dúvida entre se seríamos loucos ou heróis e segui-se sempre a rolar a bom ritmo até às 4 estradas, já bem perto de Quarteira, local onde o Pro Ressabiado e o Velopata se iriam separar.
Pouco depois de Boliqueime a segunda desgraça do dia para o Velopata. Para além de inicialmente ter perdido uma das suas luzes traseiras era agora a vez de um dos bidons. Numa zona escura e já com 500 quilómetros nas pernas o Velopata calculou mal a distância do bidon ao porta-bidons e lá ficou um deles no alcatrão.
“Queres parar para o ir buscar?” – questionou o Pro Ressabiado.
“Não, deixa estar. Já nem ´tou com paciência para isso, além de que estes bidons, como não são da mesma marca dos suportes, encaixam mal. Assim tenho desculpa para comprar outros e desta vez compro da Elite. Claro que a Srª Velopata não vai achar piada.”.
Instantes depois o Velopata reparou que o Pro Ressabiado se colocou de pé na sua montada e não se sentava, nem quando a estrada era plana.
“Então, ´tás a pagar alguma promessa?”.
“Hã?”.
“´Tás a pagar alguma promessa? Vais aí lançado em pé…”.
“Ah, está a começar a voltar o sono. Parecendo que não já são mais de 24 horas acordado e a pedalar.”.
“Mas estás bem? Queres que te acompanhe até casa?”.
“Não, não vale a pena. Até porque estou quase a chegar aos 500 quilómetros e se ficarem a faltar 1 ou 2 quilómetros para os 500 ainda vou ali à rotunda dar umas voltas antes de ir para casa!”.
“Assim é que é!”.
Uma última paragem na bomba de gasolina das 4 estradas para oficialmente finalizar a aventura. Tanto o Velopata como o Pro Ressabiado forçaram-se a comer um nougat, apesar de ambos se queixarem do sabor açucarado que já os enjoava.
O Pro Ressabiado, já cansado e mortinho por chegar a casa arrancou enquanto o Velopata aproveitou para fumar aquele cigarro final da aventura. Mas eis que havia ainda tempo para mais uma figura triste. Um jovem, nos seus vinte e poucos anos, aproximou-se da bomba de gasolina, já de portas fechadas mas atendendo clientes pela grelha de segurança e perguntou à moça que lá trabalhava;
“Boa noite. Vende litronas?”.
“Deculpe?”.
“Litronas. Vende litronas?”.
“Não, nós aqui não vendemos alcóol.”.
Desconfiado, o jovem ainda espreitou uma e outra vez para o interior da loja antes de se afastar. A moça olhou para o Velopata e encolheu os ombros.
“Ólha-me para esta aventesma… Vender alcóol numa bomba de gasolina seria cá de uma lógica…” – pensou o Velopata.
E foi com este pensamento que o Velopata se fez uma última vez à estrada, percorrendo rapidamente os poucos quilómetros que faltavam entre Almancil e Faro. Pelo caminho deu graças aos suecos cujas obras levaram a que os enlatados se afastassem da N125 e o Velopata pudesse ter a estrada toda só para ele. Final de aventura like a boss.
22:15 de sábado. Já em Faro o Velopata foi recebido pela Srª Velopata que o presenteou com um caril de soja. Tomou o seu mais que merecido duche de água quente e trancou-se na cozinha sozinho com o caril de soja. Quando finalmente a Srª Velopata conseguiu entrar foi encontrar o Velopata a lamber fervorosamente o tacho. Depois disso foi um cigarrinho na sacada e cama.
Há muito tempo que o Velopata não dormia assim. Só no dia seguinte é que a Srª Velopata se queixou; “Por momentos pensei que estava numa serração de madeira!”, comentou.
Como em tempos disse o José Pedro Gomes, no famoso soquete dos Homens do Norte na Herman Enciclopédia, quando questionado se alguma vez tinha visitado Lisboa;
“Nunca fui lá mas também não volto!”.
A opinião do Velopata sobre este evento que é o Tróia-Sagres é semelhante;
“Fui lá e não volto!”.
Se voltar, só montado numa bicicleta como a que podem ver abaixo;

Um abraço muito especial aos 3 companheiros que tornaram esta aventura inesquecível; Pro Ressabiado, Pata Negra e Falso Lento. Se o Velopata podia ter feito isto sozinho? Podia. Mas não seria a mesma coisa, nem por sombras. Um muito obrigado!
E agora toca a preparar a aventura de Janeiro!
Abraços velocipédicos,
Velopata
Eh, eh, eh! Adorei! Parabéns aos 4 resistentes! Nem quero imaginar o sofrimento desses traseiros e o peso nas pestanas…
Quanto ao TS, foi decididamente um evento diferente para cada um de nós. Ao começar tarde, evitei esses ajuntamentos de ciclocoisos mas ainda tive oportunidade de assistir a uma cena que me deixou boquiaberta. Uma carrinha de caixa aberta passa por nós com um pelotão de ciclocoisos todos fardados de igual agarrados na roda. Uma coisa que achei impressionante. Então vão para ali quebrar recordes agarrados a uma carrinha e colocando a vida dos outros em risco? Aquilo seria para se sentirem mais homens? Fica aqui a dúvida.
Boa continuação e força que a próxima deve estar quase aí, certo? Bjo
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Com certeza seria para se sentirem mais homens. Caso contrário não vestiam licras e andavam por aí a fazer as figuras que fazem.
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Boa tarde,
Fabuloso!!! Grande Demanda!!! 500Km Parabéns!!! Estive lá, vi passar o CCCP estava parado a comer, daí estivemos perto!!! Tal como infere no post, as RAZIAS é que é uma vergonha para quem anda de Bike, por 2 ou 3 vezes quase que fui empurrado para a valeta por comboios ciclistas…esses artistas ciclistas frustrados esquecem que é só levantar o cotovelo e vão todos a andar!!!
Saudações da Armona
Luís Parro
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Isso não são ciclistas! São ciclocoisos!
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Isto é que é estar vivo……e quanto mais estupido for o feito melhor!
Continuem assim.
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Com esta é que voçê trocou as voltas ao Velopata, que ficou à nora com o seu comentário!
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muito bom!! GANDAS MALUCOS!!
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