Ciclocolismo

O Velopata abriu os olhos e imediatamente o seu cérebro, ou o que restava dele, foi assaltado pelo ribombar de uma britadeira. Um cheiro fétido entrou pela narinas mas uma rápida inspeção revelou ser apenas o seu hálito. A sensação de estômago embrulhado e às voltas. Um mau estar geral disseminado pelo corpo.

Lentamente moveu uma perna para o lado e não sentiu a presença da cadela esgroviada que dorme sempre aninhada nas suas pernas. Pela luz que se sentia através da cortina, já devia passar da hora em que o felino do demo, esfomeado, acorda o Velopata, mas esta manhã nem sinal da peste.

Foi um Velopata desengonçado que se sentou na cama e olhou em volta. Não reconhecia a cama ou o quarto onde estava. A seu lado a Srª Velopata continuava tranquilamente a serrar madeira.

Com horror o Velopata percebeu a dura realidade – tinha dormido fora de casa! A Estrela Vermelha estaria a esta hora sozinha, de certeza a sentir-se abandonada. Isto se algum abominável bandido não tivesse aproveitado o facto de o Velopata dormir fora e… De imediato o Velopata foi acometido dos piores cenários imagináveis.

O dia anterior ainda se encontrava nublado na mente do Velopata. De uma coisa o Velopata lembrava-se; neste fim de semana, planeado há algum tempo, não haveria pedalada na estrada. Para além da metereologia execrável o Velopata tinha um get together da sua empresa durante o dia, acompanhado do respetivo jantar de natal à noite. Tudo pago pela empresa e com direito a estadia de uma noite, com pequeno almoço incluído, no 5 estrelas que é o hotel Grande Real Santa Eulália, em Albufeira.

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Selfie do casal Velopata todo sorridente à chegada ao hotel.

Seria a má disposição um sintoma de abstinência da Estrela Vermelha?

Provavelmente não. Era sim um sintoma da quantidade de alcóol ingerida na véspera.

 

A verdade é que após o get together, que ocupou a manhã de sábado, o Velopata foi almoçar em modo buffet e com vinho servido à lagardère. A partir daí foi uma constante carga de bombas etílicas, de tal modo que o Velopata chegou ao jantar já com uma cadência froomiana, ou seja, o Velopata ia já em glória etílica.

Se o Velopata já é conhecido por ser um chato com a sua paixão pelas bicicletas, imaginem um Velopata encharcado num cocktail de champanhe, vinho branco e uísque.

Entre idas ao bar para gritar “Ponha! Ponha!”, à pobre coitada que estava de serviço, o Velopata aproveitou e veio à sacada do recinto onde decorria o jantar fumar um cigarrito. O temporal que se fazia sentir fez com o vento tivesse fumado mais do cigarro que o Velopata.

O Velopata hesita; teriam sido os cogumelos servidos ao jantar que estavam estragados, ou o cozinheiro pregou uma partida ao Velopata tendo servido cogumelos daqueles que pregam chapadões monumentais ao cérebro, ou teria mesmo sido a couve-roxa, que até a Srª Velopata se queixou que estava muito ácida, isso o Velopata não sabe. O que sabe sim, é que naquele momento o Velopata teve uma epifania.

Todos sabemos que qualquer bêbado que se preze gosta de andar de bicicleta (e já agora, os carochos também), mas a verdade é que bêbados e ciclistas partilham uma série de características comuns. O leitor não acredita? Então vejamos;

Figuras tristes.

Adultos vestidos em licras apertadas, montados em bicicletas que custam mais que carros e pesam menos que a cadela esgroviada do Velopata, lançados serra abaixo a 80 ou 90 quilómetros por hora. Lembram-se do bêbado na festa da aldeia que vai dançar sozinho para o meio da pista do bailarico, abraçado a uma perna de presunto ou a um garrafão de 5 litros de carrasquão? Pois…

Lesões provocadas por quedas ridículas.

Esta dispensa explicações. Quem é que não se espalhou nas primeiras vezes que utilizou pedais de encaixe?

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Os corredores kubriquianos do hotel. Difícil mesmo é não cair quando se regressa ao quarto às 02 da manhã, com pouco sangue no alcóol e a tentar seguir as linhas da carpete.

Ranho, baba e mesmo vómito quando a dose é demais.

Se não tens ranho seco preso à barba, se não te estás a babar e se nunca te sentiste prestes a vomitar do esforço de subida serra acima – então estás a praticar mal este desporto! O mesmo pode ser dito do alcóolatra, se não se está a babar e não acaba a noite a vomitar então é porque a narsa foi fraquinha.

Dispender avultadas quantias de dinheiro para alimentar o vício.

Gastar 500 euros para retirar 0,00005 gramas à bicicleta e passar o resto do mês a latas de conserva e pão que quando arremessado à parede provoca rachas na parede dos vizinhos. Alcóolatra que se preze também chega a gastar 500 euros em pacotes de vinho do Lidl.

Conseguir estar eufórico, rir, chorar e sentir-se miserável, por vezes no espaço temporal de apenas 1 minuto.

A química interna vira uma montanha russa. É essa a piada, não é?

O corpo acorda com dores no dia seguinte e juramos nunca mais. 15 minutos depois já nos estamos a preparar para mais uma dose.

Porque pura e simplesmente não aprendemos a lição. E uma outra coisa que o Velopata aprendeu; com a idade o dia seguinte só tem tendência a piorar. Ou quando estamos de ressaca mas somos desafiados a “ir só beber um copo e voltamos cedo”. Chegamos a casa às 09 da manhã do dia seguinte para tentar abrir a porta dos vizinhos do andar abaixo com a nossa chave.

A sociedade acha que nos faltam parafusos e mesmo maturidade, os únicos que não pensam assim são os comparsas.

É difícil entender como é que alguém pode ter tanto prazer no ritual de auto-flagelação e destruição corporal. Da mesma maneira que um alcóolatra, quando em desespero, até perfume emborca, o ciclista, quando a metereologia não o permite, faz rolos de treino, que basicamente é andar de bicicleta sem sair do sítio. O vício fala sempre mais alto.

No início de cada sessão sentimo-nos sempre fortes e capazes de resistir a tudo.

Até à primeira subida a sério ou uma ressaca de vodka do Lidl.

Volta e meia juramos à família e amigos que vamos terminar ou, pelo menos, reduzir a dosagem.

Mas sabemos no nosso âmago que isso é impossível e o vício é e será sempre mais forte.

Já em casa, a ressaca ainda se fazia sentir. Teimoso, o Velopata tinha planeado um treino de 4 horas nos rolos. O problema é que o nível de ciclocolismo era tão elevado que, todo roto, ficou-se apenas pelas 2 horas de sofrimento. Escalfado, lançou-se nas profundezas do sofá para só acordar no dia seguinte.

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

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