O Velopata não sabe como foi ali parar.
Um ensurdecer turbilhão, qual enxame das profundezas do inferno, pulsava e voltava a pulsar como quem pulsa mesmo num longo eco pelo cérebro velopático.
Olhando em volta, o horrorizado Velopata deu por si num daqueles tão abomináveis maralhais de bichos humanos.
O êxtase que brotava dos olhos de tanto bicho humano junto levou o Velopata a s´acarditar que estava numa congregação de qualquer espécie. Uma marafada cerimónia. Urravam e voltavam a urrar como quem urra mesmo – teria o Velopata caído nas garras de uma qualquer alucinada seita? Daqueles que se matam por dá cá aquele corpo celeste?
O zunido infernal pareceu aproximar-se.
A horda galvanizada desviou sua atenção para um ponto no alcatrão distante.
Uma esguia forma enlatada assomou, seu ensurdecedor rugido lambendo o alcatrão de modo ao Velopata poder constatar uma só coisa – aquilo vinha de lá em velocidade excessiva e excesso de velocidade.
O peso do mundo abateu-se sobre os fraquinhos ombros de somali velopaticos – um de seus piores pesadelos tornara-se realidade, ali, bem diante de seus bonitos olhos castanho-esverdeado.
Beliscar de nada serviria.
Mesmo que fosse com quem belisca mesmo.
Ele encontrava-se efectivamente no Autódrimo Internacional de Portimão, assentado na bancada principal, diante da meta tão almejada pelos condutores de enlatados da fórmula um. Ou Fórmula 1.
Mas que merda.
Quem raios o teria levado até ali?
Mais; como raios o haviam convencido a participar em tão blasfema actividade, em plena posse de suas funções psicomotoras e… Que faria aquele garrafão de Óleo Alimentar a seus pés?
– Epá, vai c´um gand´a tempo!
– Vistes a velocidade a que ele entrou na curva?
– Man, é preciso ter unhas!
Um momento de pausa na cacofonia de conspurcantes motores de combustão e o zunido afastava-se, ao que o Velopata compreendeu terem todos os enlatados finalizado a volta, e o diálogo entre dois bichos humanos captou a atenção das bonitas orelhas dilatadas velopáticas.
“É preciso ter unhas.”
Unhas são necessárias quando pedalas montanha abaixo, montado num pedaço de plástico esquisito com rodas, por vezes, em plásticos ainda mais esquisitos, a 80 ou mais quilómetros por hora.
Unhas são necessárias quando pedalas em ambiente urbano, a sorrateira morte enlatada a cada curva.
Para aquilo não são precisas unhas – necessária é muita falta de amor-próprio.
Há toda uma série de questões de segurança, uma espécie de plano HACCP para condutores de enlatados em excesso de velocidade e velocidade excessiva, que não podem ser descurados de modo a garantir a salvaguarda do condutor.
Só para ver se o Velopata entendeu; um enlatado construído em plásticos esquisitos, desenhado em tudo o que é full aerocoiso da (arcaica) tecnologia enlatada, lança-se a 300 ou mais quilómetros por hora e querem o quê?
– Olha, o (nãoseiquantos) vai atestar o depósito!
– Yá, vamos ver se não perde muito tempo!
Estes outros dois bichos humanos que captaram a atenção velopática, ainda em mais obscenos que os outros pois envergavam t-shirts com descarada publicidade a marcas de enlatados presentes no certame, fãnzocas portantos, teciam suas considerações sobre o grande problema velopático com estes “desportos”.
Conduzir um enlatado não devia ser desporto em lado nenhum.
Aquilo é acelerar, travar, em alguns casos, engatar mudanças e virar direcção.
Ralli ou Rally é igual.
Em abono da verdade, há uma versão de tudo isto que o Velopata até apreciaria a visualização. Mas de longe. Bem longe. Uma corrida de enlatados da fórmula um só que em terreno de Ralli. Ou Rally. O Velopata já ouvistou mesmo Rallie. Isso sim, seria espectáculo.
Só mesmo uma espécie condenada à auto-destruição seria capaz de pegar num escasso recurso finito para brincar – nunca esquecendo que estes enlatados da fórmula um são tão ambientalmente sustentáveis que até medem seu combustível em Quilogramas.
Quilogramas, pôrra.
Cento e dez quilos.
110 Kg carrega um destes dispensadores de poluição gratuita.
Se um Velopata tem de levar com esse vosso “desporto”, ao menos façam-no com enlatados eléctricos. Ou solares.
Deixem-se de merdas.
Um turbilhão tomou conta das hostes.
Pelo matraquear do enxame, lá vinham de novo os enlatados para finalizar mais uma volta.
Ainda para mais, este nem sequer é um “desporto” que permita a salutar convivência e galhofa entre espectadores – um moçe nem consegue ouvir seus próprios pensamentos quando aquela lata em velocidade excessiva e excesso de velocidade passa perto.
Talvez aquele redemoinhar cerebral seja isso que tantos apreciam. Dá-lhes moca tipo transe e coiso.
O Velopata sentia-se naquela parte de uma espécie de Divina Comédia pessoal.
Sem Virgílios ou Beatrizes para auxiliar.
Por pesquisas na deep e dark e web e coiso, o Velopata sabe que o tenebroso jugo tirânico opressor do enlatado de tudo fez para relegar ao esquecimento um dos capítulos do Inferno.
Dante apelidara-o de Inferno dos Enlatados.
Para toda a eternidade, aquelas pobres almas de mentes corrompidas por tanto CO2 eram acorrentadas e forçadas a inspirar toda a trampa de um tubo de escape do mais conspurcante enlatado imaginável. Enquanto chicoteadas com correias de distribuição por hordas de demónios vestidos como funcionários da EMEL, faces cobertas por máscaras do Fernando Medina.
– É lá! Vistess, ia saindo de pista! Vem lançado!
O Velopata já não conseguia focar a proveniência da voz – a turba ao rubro e o rugir dos enlatados em velocidade excessiva e excesso de velocidade não permitiam congeminar um só pensamento.
Mas o moçe tinha razão – na curva que antecedia a recta da meta, um enlatado quase se esbardalhava para fora de pista.
E sem saber muito bem como ou porquê o Velopata deu por si olhando aquele garrafão de Óleo Alimentar a seus pés.
O enxame enraivecido volta a soar mais forte.
Vinham de lá os enlatados da fórmula um em excesso de velocidade e velocidade excessiva, lavrando alcatrão para completar mais uma volta.
O momento é quase matrixiano.
Tudo parecia se mover em câmera lenta, enlatados inclusivé.
O Velopata atira o garrafão de Óleo Alimentar para a pista.
Num ápice, uma gordurosa mancha deslizante se forma e engolfa toda a largura da pista.
CRASH!
O Velopata delicia-se enquanto um após outro, os enlatados da fórmula um esbardalham-se para horror da multidão, incapazes de controlar seus devoradores de hidrocarbonetos no oceano de Óleo Alimentar na pista. Condutores fogem enquanto as trucidadas latas pegam fogo.
Nero ficaria orgulhoso.
Um puxão nas licras velopáticas desvia a atenção do verdadeiro Carmaggedon.
O Velopatazinho está ali, cabisbaixo observa o Vesúvio enlatado.
– Paiii…
– Filho?
– Fizeram mal aos pópós. Não gosta que façam mal aos pópós.
– O quê filho?
– Não gosta de ver fazer mal aos pópós.
Um sobressalto na cama do casal velopático.
Um com-súores-frios-até-à-alma Velopata acorda.
A Srª Velopata aparenta praticar rolos de treino e nada mais senão silêncio do quarto do Velopatazinho.
Aquilo só podia tratar-se de pensamentos e preocupações recalcadas das notícias desse dia – a fórmula um estará em Portimão durante Outubro ou lá o que é.
E houve quem rejubilasse por termos o estado português a investir o nosso guito em obras de requalificação que serão certamente realizadas por uma empresa alemã de sede fiscal na Holanda.
Para termos uma edição de um Grande Prémio.
1!
Se o nosso (des)governo não tiver fincado bem o pé, exigindo que tanto investimento mereça a continuação da visita do certame durante mais uns bons anos, então tudo isto parece ao Velopata mais do que já esperava das ajudas que finalmente a Europa lá conseguiu orientar.
Vaiam para saco roto e mais do mesmo.
Ou dos mesmos.
Abraços (à segura distância higiénica) velocipédicos,
Velopata