Sempre que o Velopata é forçado a horas, dias, semanas ou até…
(pausa para engolir em seco)
Meses afastado do nobre acto de pedalar, alevantam-se uma série de sintomas de Abstenção Velocipédica facilmente identificáveis por qualquer veterinário sem necessidade de recorrer a complicados exames.
Eis uma lista;
Irritabilidade – dar ao pedal auxilia o libertar de energias acumuladas durante o ciclo quotidiano de vida civil. Isto é tão verdade quanto a Primeira Lei Fundamental da Termodinâmica. Não pedalando, as energias acumulam-se até transbordar e é nesse momento que dás por ti berrando e com vontade de atirar pela janela o comando da televisão mais aquele seu botãozinho de alevantar o volume que não funciona, mesmo sabendo que as pilhas não são mudadas vão para aí uns dez anos.
Engorda – o belo corpinho somali-anoréctico continua habituado e carente das mesmas alarves doses de comida (para ira da Srª Velopata), simplesmente não têm onde as queimar. Naturalmente as pernas incham, os braços incham, o estômago incha… Todos os orgãos e sistemas parecem inchar. Consequentemente, também incham os números no mostrador digital da Balança, mesmo depois desta ser atirada à parede ou jogada da janela de um 4º andar que, visto das traseiras, se assemelha a um 5º.
Cafeína – constantemente tentas enganar corpo e mente dormentes e adormecidos com aquele alerta e excitação que só uma pedalada sob a moca da cafeína consegue proporcionar. Até descobrires que com tanto café emborcado, não consegues pregar olho para o soninho recuperador bom mas, quanto a isso, o Velopata já tecerá suas considerações.
Entupimento – verdade seja escrita sem complexos ou pudores, a merda atrasa-se. Com tanto fuel ingerido mas sem actividade para o queimar, sistemas e orgãos entupidos e inchados, tudo funciona mal, digestão incluída. Quando antes encontravas-te habituado a expelir pouco depois de ingerir, todo o processo leva agora mais horas, às vezes até dias. Uma merda. Literalmente.
Inveja – segues na tua miserável vida civil e vês alguém pedalando. Naturalmente, ciumentos e obscuros pensamentos despertam para tomar conta de tua mente, não perdendo o cérebro tempo com detalhes como o facto de estares invejoso de um Sem Abrigo que pedala na para-lá-de-ferrujenta Bicicleta com ambos os dois pneus vazios para além de faltarem vários raios em suas rodas.
Fantasia – invariavelmente ocorre pouco tempo depois da Inveja se ter manifestado e instalado – constantemente sonhas acordado com todos os quilómetros que podias estar a pedalar. E essa pedalada seria linda, maravilhosa, magnânime e coiso. Até um KOM conseguirias. Não obstante estares fechado num escritório sem janelas e viveres numa qualquer urbe onde ao primeiro sinal de uma Bicicleta na estrada, o vil jugo opressor tirânico do enlatado coloca suas garras de fora, assim forçando-te a pedalar com um só objectivo em mente – evitar o estropiamento por enlatado.
Enferrujar – este é o momento no qual tuas costas e basicamente todo o corpo começam a transformar-se num Condor (Vultur gryphus ou Gymnogyps californianus, como o mui querido leitor preferir). É com dor aqui, com dor ali, dores em regiões anatómicas outrora desconhecidas, acutilantes dores que nunca antes haveis experienciado. As articulações também se ressentem, apresentando agora a agilidade de um ramo de eucalipto despojado de seiva e seco até ao tutano. Pode ser confundido com P.D.I., sigla que o Velopata não explicará pois este continua a querer-se um espaço velointernético para toda a família.
Falsidade – este é o desesperado momento em que o sujeito se tenta dedicar a uma qualquer outra forma de desporto (menor), optando por engenhosas soluções como Yoga, Pilates, Jogging ou Running ou Footing ou lá o que é (aquele onde se utilizam os xispes para correr), comprar uns pesos na Sportathlon que só servirão para nivelar um qualquer móvel do lar, Ginásios, o Facebook, o Tinder ou a Internet. Dependendo da vossa sorte genética, exceptuando o Tinder, NÃO FUNCIONAM como alternativa viável ao exercício físico.
Insónias – habituado a cavalares doses de actividade e consumo energético, o corpo não sabe o que fazer quando o cansaço é nulo – bem podes dizer adeus às salutares oito horinhas de soninho recuperador bom.
Certamente mais sintomas de abstinência velocipédica existirão, no entanto, o Velopata já está irritado demais para continuar sua dissertação por estes tenebrosos meandros.
(Nota velopatóide: mesmo tendo já praticado sessões de auto-mutilação na máquina de auto-tortura da Tacx e duas curtas pedaladas pelo seu quintal, o Velopata aparenta ainda sentir resquícios de um je ne sais quois de privação velocipédica.)
E depois, como uma caliginosa tempestade que obscurecia o vibrante céu azul, as nuvens dissipam e o Sol volta a brilhar para te deixar regressar à primeira pedalada pós-jejum.
Eis uma lista do que sentirás;
Excitação – estás finalmente de regresso à estrada ou aos trilhos. A excitação urinária toma conta de ti, manchando ligeiramente os bib shorts enquanto te questionas como foi possível sobreviver até aqui. Escassos segundos decorridos e todos os sorrisos cessam enquanto passas à fase seguinte.
Alienígena – não importa quantos Bike Fit já tenhas feito no passado, a primeira sensação será sempre que a Bicicleta escolhida é um corpo estranho qual alienígena sobre o qual te debruças. Experimentarás uma sensação de regresso aos primórdios, qual petiz que pela primeira vez aprende a pedalar sem apoio parental. Toda a Técnica que outrora dominavas esfumou-se e qualquer buraquinho no alcatrão ou pedra no trilho é suficiente para te deixar na iminência do esbardalho. E a primeira vez que te alevantas do selim para pedalar de pé? Os sapatos de encaixe quase resvalam dos pedais e só não te esbardalhas porque tua nobre Bicicleta protege-te, sabendo que a humilhação a que te sujeitas já é demais per se.
Vento – tanto tempo castrado do mui amado nobre acto de pedalar e esqueces-te que o vento sopra sempre em duas únicas direcções; de frente na ida e contra no regresso.
Subidas – não importa que o Garmin te indique que ultrapassas um segmento de 0,0000005% de inclinação – qualquer desnível positivo parecerá que estás a subir o Alto do Malhão. De Talega engatada.
FTPmax do Lactato da Cadência Anaeróbia – não importa que sensores equipem tua Bicicleta ou tragas presos ao peito, o simples acto de rodar uma perna e depois a outra levará a que sintas teus pulmões querer saltar pelos cantos da boca enquanto o Garmin questiona se não será apropriado disparar uma mensagem automática com tua posição geográfica para o INEM pois tua Frequência Cardíaca acabou de ser registada pelo Guinness World Records.
Condor (novamente Vultur gryphus ou Gymnogyps californianus, como o mui querido leitor preferir) – não importa quantos quilómetros conseguias fazer até as manápulas ficarem dormentes, a picadelazinha no joelho ou aquela dor no fundo das costas te começarem a incomodar. Finda a secura velocipédica, o regresso à pedalada é marcado com dor aqui, com dor ali, até regiões anatómicas que nunca te doeram ao comando de uma nobre Bicicleta te levarão à iminência de pensar em telefonar a alguém (preferencialmente civil, assim evitando o escárnio), para te vir buscar ao ambiente serrano quiçá até mesmo para arrumar definitivamente os sapatos de encaixe. Relaccionada com o Condor encontra-se a fase seguinte.
Carneira – não há gel, gel 3D, gel 3D Coolmax, gel 3D Coolmax em carbono, gel 3D Coolmax em full carbono, gel 3D Coolmax em full aero carbono ou gel 3D Coolmax em full aero carbono Ergocomfortcoiso que te safe da lástima em que os Bib Shorts e respectiva Carneira vão deixar tuas partes baixas. Isto é tão verdade quanto a Segunda Lei Fundamental da Termodinâmica. O mesmo se aplica aos cremes de besuntamento das zonas circum-genitais. Nunca conseguirás besuntar creme suficiente que te salve de uns dias com um “andar estranho” ou onde assentar-te é sempre acompanhado de movimentos corporais indignos para um macho/fêmea da tua idade. Isto é tão verdade quanto a Terceira Lei Fundamental da Termodinâmica.
Humilhação – particularmente se a pedalada de regresso pós-jejum se realizar num fim de semana, a probabilidade de encontrar outros Ciclistas é exponencialmente elevada. A humilhação é inevitável – serás enxovalhado até por aquele teu conhecido Ciclista que é assim mais… Mais… Mais a puxar para o badocha, vá e cujo peso corporal é aí três a quatro vezes superior ao teu. Isto é tão verdade quanto a Quarta Lei Fundamental da Termodinâmica. E reza a todos os Santinhos Velocipédicos para não encontrares uma troupe ressabiada.
Dúvida – a dúvida existencial instalar-se-á na tua mente – será que alguma vez serás capaz de regressar ao espectacular momento de boa forma velocipédica de outrora? Lá no fundo já sabes a resposta mas tentas enganar teu cérebro, rodando uma e outra vez as pernas. A resposta é “Não”.
Média – o valor dos Quilómetros por hora percorridos serão deploráveis chegando mesmo a fulcral dúvida existencial a instalar-se na tua mente – deves ou não carregar esta miserável volta no Strava? Deves poupar-te à humilhação strávica? A dada quilometragem começas a perceber que a única média que realmente importa é aquela que tão merecidamente apreciarás no tasco, findas tantas horas de sofrimento.
Empeno – a inevitabilidade manifestar-se-á sob a forma de um monumental Empeno. Assim mesmo, com E maiúsculo. Daqueles que levarão dias a recuperar das mazelas, não apenas físicas mas também psicológicas. A existir, isto seria tão verdade quanto a Quinta Lei Fundamental da Termodinâmica.
Com todas estas vicissitudes aqui expostas e escrutinadas, é impossível não dar razão ao famoso échetégue de Professor Carochas.
#éumavidaasofrer
É uma vida a sofrer.
Mas uma que o Velopata não trocava por nada deste ou do outro mundo.
Abraços velocipédicos,
Velopata