O Velopata seguia flagelando suas pernas ao longo do reconhecido segmento strávico “Califórnia-Salir”, uma brutal subida de um vírgula vinte e cinco quilómetros de extensão onde a local sinaléctica de trânsito indica uns horríveis dez por cento de inclinação, o Strava indica apenas nove (muito melhor!), no entanto, ele não conseguiu deixar de reflectir como quem reflecte mesmo que, à semelhança do que fazem muitos sites de consulta metereológica, alguém devia introduzir o conceito strávico de “Inclinação Real vs Inclinação Sentida”.
É que aquilo até pode muito bem ser nove ou dez por cento de inclinação mas, quando lá se pedala, facilmente se sente que se está a ultrapassar uma parede aí de uns trinta por cento de inclinação.
Ocupado com estes e outros devaneios na mioleira, o Velopata nem se apercebeu quando o conspurcante-de-atmosferas roncar de um enlatado soou na sua roda.
Em mais lento que lentamente, naquele troço cuja Inclinação Sentida aparenta atingir os quarenta por cento, o Velopata comandou a Estrela Vermelha para uma posição mais próxima da berma porque já se sabe como é… Não fosse o enlatado tecê-las… Mas nada podia preparar o Velopata para o que ele ouvistou quando o enlatado seguiu com sua ultrapassagem – para espanto, surpresa e muito horror velopático, um Ciclista seguia agarrado ao enlatado, devorando aquela subida a uma velocidade tal que, a Inclinação Sentida para este mafarrico devia parecer uma sinuosa descida.
Escassos segundos depois, já o moçe e seu enlatado de apoio desapareciam no horizonte, restando a um almariado Velopata regressar aos seus devaneios psicológicos e rezar ao agora canonizado Santo Pou-Pou para que aquele suplício terminasse quanto antes.
Mas… A lata daquele moçe.
Literalmente.
Finalizada a inclinada tortura alcatroada, foi novamente com espanto que o Velopata encontrou o moçe entretido com seu GPS enquanto imobilizado no cume da subida, o enlatado parado uns metros à frente.
Aproximando-se do moçe, o Velopata já mentalmente ensaiava um cáustico discurso com o objectivo de tentar incutir algum bom senso, educação e civismo velocipédico quando… O reconheceu.
Nils Eekhoff.
Isso mesmo, mui queridos leitores, em plena serra algarvia, o Velopata encontrou o holandês vencedor da corrida do Campeonato do Mundo de Ciclismo Sub-23 mas que, finda a visualização das imagens da mesma pelos Comissários, foi desclassificado por ter apanhado boleia de um enlatado de sua equipa durante bem mais de uma hora, justificando tal sacrista atitude com um furo que o havia feito perder o contacto com pelotão e frente da corrida.

Óbviamente que o achincalhante discurso velopático passou para segundo plano.
(Nota velopatóide: toda a seguinte conversa foi traduzida do holandês pois como o mui querido leitor saberá, o Velopata é moçe muita forte na poliglotofilia.)
Velopata: Ei, tu és o Niles Écofe certo?
Nils Eekhoff: Desculpe?
VP: Niles Écófe. Desculpai o sotaque mas… És tu, não és?
NE: Ah sim, sou eu.
VP: Então mas afinal o que é que se passou lá nos Campeonatos do Mundo?
NE: Olha pá foi uma vergonha. Ganhei a corrida e as fraudes que são os Comissários decidiram desclassificar-me.
VP: Mas porquê?
NE: Porque dizem que fiz batota… Vê bem… Batota!
VP: Realmente é muito estranho isso, onde já se viu Ciclistas fazerem batota… Mas conta lá, que batota dizem haveis feito?
NE: Podes nem acreditar mas dizem que foi porque pedalei mais de uma hora no túnel de vento de um carro.
VP: E haveis mesmo feito isso?
NE: Sim.
VP: Impressionante… E os Comissários tiveram a ousadia de te desqualificar por isso?
NE: Pois, já vistesss bem?!?! Mas tão lixados porque já reuni uma equipa de advogados para lhes dar uma batalha judicial daquelas!
VP: Certo… Então e qual será a argumentação?
NE: Muito simples… Eu fiz batota e eles dizem que fiz batota.
VP: Dificilmente a coisa podia ser mais simples.
NE: Então não é? Se me vão desqualificar por ter feito batota… O que vai acontecer com todos os batoteiros?
VP: Como assim? Explicai-vos.
NE: A batotice no Ciclismo. As drogas, os motores escondidos, os bidons com cola, os atalhos no percurso, aproveitar o túnel de vento das motas, as licras aero-ilegais e as meias de tamanhos ilegais que dão aqueles ganhos marginais, os reboques pelos carros de apoio, as bruscas mudanças de trajectória nos sprints, os puxões de jerseys e não sei se já disse mas as drogas e… E o Ciclismo Profissional como é que fica?
VP: Sabeis que um Velopata nunca havia pensado nisso assim.
NE: Quem?
VP: O Velop… Nada, deixai estar.
NE: Mas é ou não é? Se reprimes um batoteiro porque fez batota, então todos os batoteiros deixam de fazer batota e depois ficas com o quê?
VP: Uma corrida de Bicicletas?
NE: Nem mais! E depois vão lixar e estragar todo este belo circo comercial e computadorizado que são as corridas profissionais!
VP: O Velopata duvida que muitos fãs conseguissem aguentar isso.
NE: Pois não conseguiam. Não só não conseguiam como nem querem ver o seu querido desporto sucumbir assim.
VP: Acreditais mesmo que tua batotice foi justa?
NE: Mas alguém tem dúvidas?!?!? De acordo com as regras eu fiz batota a cem por cento!
VP: Então mas atentai… E se a desqualificação se mantiver… Achais que pararás de fazer batota?
NE: Claro que não! Eu quero ganhar corridas.
VP: Uhm…Okay. Então vá, boas pedaladas e boa sorte.
NE: Obrigado.
E lá seguiram com suas vidas Velopata e Nils Eekhoff; o Velopata aproveitando a descida para recuperar bofes e pernas e o batoteiro, até a descer, colado no enlatado de apoio.

Abraços velocipédicos,
Velopata