Sexénio

Recentemente, um artigo publicado por um importante sítio de referência velointernético captou a atenção velopática, apresentando uma nova teoria para discussão em sede de consertação social velocipédica – a teoria dos seis anos.

(Nota velopatóide: se os mui queridos leitores vinham aqui procurando badalhoquice, fruto das iniciais do título desta publicação; S, E e X, podem ir tirando a Bicicletinha da chuva pois sexénio mais não é que a correta terminologia técnico-táctica para definir um ciclo de seis anos.)

Esta é uma teoria simples e de fácil interpretação; ao que tudo indica, a maioria dos bichos humanos da Ordem Velocipediae arrumas suas Bicicletas e desiste desta espectacular vida de fome, miséria e sofrimento ao fim de seis tortuosos anos.

Para uns serão sete anos, outros oito ou nove, alguns poderão mesmo atingir a marca da década, no entanto, de acordo com a comunidade mais ou menos científica que publica estes estudos (provavelmente os mesmos investigadores que comprovaram que os bichos humanos que festejam mais aniversários parecem ser os que mais anos vivem), seis anos é a média na qual um moçe pendura suas licras para todo o sempre.

Eis como parece funcionar este ciclo dos seis anos.

(Nota velopatóide: óbviamente que os Ciclistas que optam por arrumar seus sapatos de encaixe por motivos de saúde, geralmente associada a esse vicioso e horrendo ciclo que é a falta de pedalada, quedas que originaram incapacitantes mazelas ou mesmo o atropelo e consequente morte por enlatado, não se enquadram no estudo apresentado por estes reputados investigadores, tão pouco terão sido contemplados nesta sempre importante dissertação velopática.)

Ano 1 

Um moçe adquire uma Bicicleta; não importando se acometido de uma grave crise de meia idade, convencido pelos seus párias que este é um excelente escape das respectivas durante o fim de semana, porque quer emagrecer, porque decidiu dedicar-se a um lifestyle chique, saudável e isento de glúten ou apenas porque é adepto de sadomasoquismo.

Após visitar várias lojas da especialidade velocipédica onde sentiu que estava diante de um assalto à mão desarmada, observando as módicas quantias pedidas pelo que nem se pareciam com as Bicicletas que lembrava de sua infância (longínquos tempos passados nos quais a humanidade ainda não tinha descoberto o aero), lá se convenceu a dar largas à bolsa e adquiriu uma Bicicleta na Sportathlon, aproveitando as promoções para adquirir também a restante parafernália necessária; licras, capacete, luvas, ciclómetro mas jamais os pedais de encaixe que isso é coisa que deve ser deixada para a prózada, além de lhe parecer por demais perigoso pedalar enganchado na Bicicleta.

Começou a dar as suas primeiras voltinhas e viu descer o peso na balança à medida que o seu fitness subia, levando-o a questionar-se porque razão não se meteu nesta maravilha do Ciclismo muitos anos em antes.

Ano 2

Mais e melhor fitness levam-no a experimentar novas estradas ou trilhos, aventurando-se na serra local até que a iminência de várias quedas provocadas pelas sapatilhas resvalarem dos pedais, devido ao ainda desconhecido FTPmax do lactato da cadência produzida, o obrigam a regressar à Sportathlon para adquirir sapatos de encaixe com os respectivos pedais de encaixe.

É também durante este segundo ano que o sujeito se juntará a um clube velocipédico, sendo-lhe assim providenciada a quantidade adequada de carochas a ingerir, levando-o a descobrir todas as intrincadas complexidades da epistemologia da palavra “Empeno”.

A par de travar seus primeiros contactos com o conhecido Homem da Marreta, dá-se também a primeira queda motivada pelos pedais de encaixe, qual seca vagem de alfarroba, só tardiamente (e dolorosamente!), descobrindo que deve desconectar sapato do pedal em antes de estar totalmente imobilizado.

É também no final deste segundo ano que se dá um acontecimento marcante na vida do sujeito que assim deixa a fase larvar para entrar na idade adulta da Velocipedia, transformando-se num atleta de baixa competição – a descoberta do Strava.

Ano 3

O progresso velocipédico do sujeito é fabuloso agora que descobriu o Strava e aprendeu terminologia técnico-táctica como “Cadência”, “Lactato”, “Mesociclo”, “FTPmax”, “Aero” e “Full Aero”, todo um universo até então desconhecido agora potenciado pela troca do seu velhinho e obsoleto ciclómetro por um computador de Ciclismo daqueles a sério, conhecido por entre seus párias como Garmin.

Convencido de suas extraordinárias capacidades velocipédicas, uma vez que consegue encarochar seus amigos menos fit e mais gordos nas pedaladas domingueiras, inscreve-se no primeiro granfondue onde é cilindrado pela concorrência, chegando assim a uma única conclusão possível e lógica – precisa de uma Bicicleta melhor.

É então que o sujeito descobre o material que revolucionará sua vida – o Carbono.

Ano 4

Maravilhado com o admirável mundo novo carbonatado que se materializa diante de seus olhos, o sujeito descobre a fabulosa relação n+1 e as obras de arte e demais quinquilharias que outrora embelezavam mobília e paredes de seu lar são substituídas por Bicicletas adequadas aos vários tipos de treino que o atleta de baixa competição tanto necessita para crescer; Estrada, Tuénináiners, Contra-Relógio, Gravel, Ciclocross, Aventura e o que mais a indústria lhe consiga impingir.

Nesta fase do seu ciclo de vida velocipédico, o Carbono torna-se Rei e Senhor.

Ele é licras com Carbono. Pequeno almoço com uma mistura de granola, bagas goji e micropartículas de carbono. Os sapatos de encaixe são trocados por novos, estes já com aquela sola full aero Carbono que fará toda a diferença na amperagem dos seus watts por quilograma.

De repente, são as dez velocidades que compõem o grupo de sua Bicicleta que estão a atrasar a sua evolução. Onze, doze, treuze e quatorze velocidades é que são a opção certa. E porque não uma Bicicleta totalmente desprovida de cabos? Grupos com uáifái e dente azul são a óbvia solução para não ser fulminado no próximo granfondue.

A juntar a toda esta revolução carbonatada, o sujeito descobre que pode potenciar seus treinos a um nível nunca antes ouvisto com o auxílio de uma infindável variedade de sensores emparelhados com seu Garmin, desde velocidade a cadência esfíncteriana, não há parâmetro ou estatística corporal cujo registo e partilha pelas redes sociais não seja fulcral à sua evolução enquanto atleta de baixa competição.

Este é também o ano em que o sujeito tem seu primeiro contacto com o Dark Side da Velocipedia – os rolos de treino; Zwifts e derivados.

Desprezando a apreciação de belas paisagens serranas, a síntese de Vitamina D, o companheirismo e camaradagem, o atleta lança-se num frenesim de auto-tortura e mutilação convencido que aquelas sensações e experiências de quase morte serão capazes de o levar à fama, fortuna e glória velocipédica no próximo granfondue.

A par da entrada no Lago Negro da Velocipedia, também a sua relação conjugal entra num perturbado período à medida que a respectiva (ou respectivo), começa a extravasar todo seu descontentamento para com a quantidade de rodas que pululam pelas várias divisões do lar – ele é rodas com os mais variados números de raios, diferentes medidas de perfis de acordo com as velocidades do vento habituais na estação do ano, cubos em titânio, cubos em alumínio, cubos em cromoly, cubos em alumínio daquele da Cannondale, cubos em carbono e cubos em full aero carbono.

Ano 5

Ao quinto ano dedicado à nobre arte velocipédica, o atleta de baixa competição nem se apercebe como sua vida social foi alterada.

Não mais se permite nocturnas sessões copófonas com os amigos de outrora (ao quinto ano já todos os seus amigos são única e exclusivamente Ciclistas), pois a) no dia seguinte tem de se alevantar cedo para treinar, ou b) está cansado demais findo o empenante treino. Não mais os familiares o convidam para almoçaradas ou jantaradas pois a) já ninguém o suporta com a milimétrica contagem de calorias, ou b) não há orçamento familiar que aguente aquela debulhadora.

As mais próximas relações familiares são colocadas à prova; a respectiva (ou respectivo), lançam-lhe derradeiros ultimatos (em dúvida, lembrem-se de Rosa Grilo), pois o atleta já nem seus deveres sexuais pratica por receio e horror de perder Testosterona (ou Progesterona, no caso feminino), os próprios filhos já nem o reconhecem quando não enverga suas multicoloridas licras.

(Nota velopatóide: é também por volta do quinto ano que terá seus primeiros contactos com as Testemunhas de Batráquio, triatletas que o tentarão convencer que pode deixar de ser mau em um só desporto para passar a sê-lo em três.)

Mas o atleta de baixa competição de nada quer saber, mente focada naquele importante objectivo para o qual se tem preparado afincadamente – a revancha no primeiro granfondue onde foi achincalhado.

Chega o grande dia.

E é novamente encarochado e trucidado pela concorrência.

Ano 6 

Tal como toda a revolução velocipédica que o acometeu teve a sua fulminante génese, a vontade de montar sua Bicicleta esvai-se lentamente de dia para dia.

Para quê sofrer as agruras da dura vida do pedal se nenhuma corrida vai vencer?

E lentamente as Bicicletas apodrecerão num qualquer canto da sacada ou garagem, as licras ganharão tamanhas quantidades de pó e ácaros que jamais alguém será capaz de as envergar sem ser acometido de uma crise anafiláticofílica ou lá o que é, os sapatos de encaixe serão esquecidos por entre os milhares de milhões de caixas de sapatos da respectiva para nunca mais sentirem um pedal assim, bem juntinho.

Talvez as Bicicletas ainda tenham alguma sorte e o sujeito as tente vender, o problema é que o passar dos anos e os avanços da indústria levarão a uma tremenda desvalorização carbonatada pois o que à época de compra se revelava um avião, anos volvidos e não passará de um ferro.

E de repente, o moçe adquire uma prancha daquelas que parecem as dos índios só que em mais chique pois permite a prática do Supping (neste caso, o Velopata refere-se à prática do Stand Up Paddle, não devendo ser confundida com Souping, que é o acto de comer sopa); não importando se acometido de uma grave crise de meia idade, convencido pelos seus párias que este é um excelente escape das respectivas durante o fim de semana, porque quer emagrecer, porque decidiu dedicar-se a um lifestyle chique, saudável e isento de glúten ou apenas porque é adepto de sadomasoquismo…

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

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