Refastelado sobre uma daquelas poltronas onde não se está deitado mas também não se está sentado, qual grandioso Imperador romano de outrora, o Velopata recuperava da Cicloperegrinação percorrida até então, com a Monica Bellucci massajando-lhe a perna direita e Sofia Vergara a perna esquerda. Também presentes estavam Dânia Neto e São José Correia, ambas as duas abanando umas folhas de palmeira para que o motor velopático pudesse arrefecer de tanta violência velocipédica.
Para auxiliar a recuperação, Asia Argento colocava pequenas framboesas e outros suculentos frutos vermelhos na boca do Velopata, tudo muito rico em antioxidantes e sem pudores quanto ao facto de o Velopata poder apresentar queixa às autoridades, afinal de contas ele não é nenhum labrego e sabe que se devem agradecer oportunidades destas aos Deuses mesmo quando se é menor de idade (se é que actualmente alguém com 17 anos é menor de idade e desconhece a razão dos bichos humanos se dividirem em machos, fêmeas e outras coisas como José Castelo Branco e Gustavo Santos).
O som da magistral voz de Cate Blanchett perfumava o ambiente, recitando pequenos trechos de O Senhor dos Anéis, enquanto a maior representante portuguesa no estrangeiro lá de fora Érica Fontes e a rainha do Tropical Urbano (seja lá o que isso for, até parece que importa quando o assunto é a nossa turbinada), Ana Malhoa, dançavam em torno de um varão que se percebia ser fabricado em carbono de alto módulo, dada a sua perceptível rigidez lateral.
Que visão era aquela meus mui queridos leitores… Tanta formosa mulher, menina e moça, todas prestando atenção e cuidados ao Velopata, vestidas apenas com apertadas e multicoloridas licras com publicidade a enchidos, só que vegetarianos – um mimo que este vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal bem merecia findos já 240 quilómetros e mais de 10 horas de cicloperegrina pedalada.
Por entre a mescla de erotismo e sensualidade, eis que aparece Madonna, mais ou menos vestida como nos seus gloriosos tempos de badalhoca no álbum Erotica, piscando o olho ao Velopata e de sorriso maroto questionando-o sobre onde estaria ele interessado em estancionar a Estrela Vermelha, pagando apenas uma bagatela.
Clak-Clak-Clak-Clak.
Aquele som do cubo de uma roda traseira a rolar no vazio.
Clak-Clak-Clak-Clak.
De onde estaria aquele som a ser produzido, chegando às bonitas orelhas dilatadas do Velopata, se a Estrela Vermelha não se encontrava por perto?
Capítulo VI
O Esfregona
“ÁÁÁÁÁÁÁIIIIIII!!!!”
O Velopata acordou no interior da Lata de Apoio Velopático com um grito tal que até os bravos militares do Regimento de Artilharia Nrº 5 do Quartel de Vendas Novas fez tremer de horror, acreditando que José Castelo Branco andaria por ali à solta.
Aquele som do cubo de uma roda traseira em movimento só uma coisa podia indicar – algum amigo do alheio se afiambrava à Estrela Vermelha, aproveitando o facto do cansado Velopata ter descuidado sua guarda, deixando-se adormecer. Quiçá, um castigo de Suas Altas Eminências Velocipédicas por o Velopata ter procurado o (falso) conforto que a Lata de Apoio Velopático conseguia proporcionar enquanto aguardava a chegada do Agente de Autoridade Anónimo ao rendez vous.
Ainda de olhar semi-cerrado e incapaz de focar corretamente, já o Velopata saltava da Lata de Apoio Velopático, punhos em riste e pronto a defender a Estrela Vermelha até com a sua vida se tal fosse necessário.
Determinado a desferir poderosos golpes com os seus braçinhos de etíope anoréctico, o Velopata avançou sobre aquela negra sombra que se movia junto da Estrela Vermelha apenas para perceber que… AAA chegava ao ponto de encontro e aquele som de cubo traseiro mais não era que a sua cubóide máquina, a Cigarra, a ser estancionada junto da Estrela Vermelha.
(Nota velopática: segundo o Velopata apurou, tudo indica que o nome escolhido por AAA para baptizar sua nobre montada não se prende com o facto de esta não ser dada à labuta, como na lenga-lenga da formiga, e sim com o cagaçal que as suas rodas produzem, uma vez que são daquelas rodas em carbono, mesmo só carbono, totalmente em carbono, 100% carbono, full aero carbono.)
Trivialidades cumpridas e apresentações feitas, servindo o Velopata de intermediário, e já o trio Velopata, O Facho e AAA se assentavam no quentinho interior do tasco The Lord of the Bifanas onde, segundo conseguiu o Velopata apurar, serviam aquela One Bifana to rule them all.
Se o cheiro a cadáver suíno sendo cozinhado empestava a atmosfera, o que dizer da clientela a tão matutina hora?
Uns quantos jovens sentavam-se na mesa a um canto do tasco, provavelmente recuperando os estômagos da nocturna sessão copófona, dois ou três condutores de pesados enlatados de transporte de mercadorias também trabalhavam o serrote mas quem imediatamente captou a atenção velopática foi um moço que dir-se-ia um misto de campino com tóxcóindependente.
Tentando desesperadamente iniciar diálogos e conversas desmioladas, desincronizadas e desprovidas de qualquer sentido com todos os transeuntes que se aproximavam do balcão, o Campino Tóxcóindependete só cessou aquela matraca quando viu o Velopata aproximar-se para fazer o seu pedido. Já o Velopata evitou cruzar o olhar com este, pois se há coisa que não apetecia a um enlicrado armado ao ultraciclista, era cansar o cérebro com as trivialidades de alguém notóriamente entupido em estupefacientes. Ou álcool. Ou ambos os dois.
Minutos depois, já o trio carregava nas suas opções gastronómicas; O Facho, não lhe apetecendo nada muito pesado, optou por um galão e uma sandes de pedaços de cadáver suíno fumadas, AAA lançou-se à tal bifana que todas as outras dominava empurrada por uma bujeca, já o Velopata, sempre lixado quando as pit stops decorrem nestes bárbaros locais, optou por um galão e uma sandocha de queijo, não perdendo tempo a questionar os donos do tasco se aqueles leite e queijo seriam provenientes de vacas tão bem tratadas e estimadas como dizem ser as açorianas.
Mesmo com tudo rapidamente devorado, o estômago velopático resfolegava, indicando que lhe faltava ainda um je ne sais quois, tendo ele decidido dar uma vista de olhos pela vitrine onde muitas iguarias repousavam.
E foi então que o Velopata descobriu o oásis gastronómico que por entre tanta barbárie se escondia.
Empadas de vegetais.
O problema?
Só restava uma, ao contrário das bárbaras empadas de carne suína que abundavam em monte.
E isto é algo que o Velopata já muitas vezes assistiu e sobre o qual ele tem de escrevinhar umas linhas para a posteridade velocipédica; todas as troupes com quem o Velopata partilha pedaladas goza sempre com as suas opções gastronómico-culinárias, no entanto, o mui querido leitor consegue adivinhar qual é a iguaria que voa primeiro e todos querem provar?
Ah, pois é.
O Velopata até aposta que muitos dos condutores de enlatados de transporte de mercadorias devem criticar e gozar nas caixas de comentários internéticas com os apetites vegetarianos, apelidando-os de mariconços e coiso, mas secretamente enfardam naquelas empadas de vegetais como se no dia seguinte o céu fosse caír sobre suas cabeças.
Sem sombra de dúvidas, o Velopata ainda hoje se questiona como podem tão bárbaros cozinheiros ter produzido tamanha magistralidade de empada de vegetais.
De estômagos forrados, o trio carregou ainda na cafeína mas em antes de proceder aos respectivos pagamentos, um aviso soou;
“Tenham cuidado com as vossas bicicletas e aquela ave rara.” – notificou um dos garçons do tasco, apontando para o Campino Tóxcóindependente no exterior, que se dedicava à mesma actividade que o Velopata não via a hora, findo aquele terrível acordar com o sentimento que lhe estariam a roubar a Estrela Vermelha para além do bucho cheio.
O belo cigarrinho, pois claro.
Com aquele fumo que transforma os pulmões do Velopata e o alcatrão da estrada num só, o Velopata dava graças pelo ciclo menstrual de São Pedro parecer estar a deixar os dias difíceis para trás; a chuva parecia ter terminado e o vento amainado, e bafo aqui e bafo ali, o trio preparava-se para continuar a Santa Demanda, quando o Velopata ouve a voz do Campino Tóxcóindependente;
“Epá, ia jurar que é a primeira vez ca vejo um ciclista a fumar!”
“Então não conhece o lendário Eddy Merckx?” – retorquiu o Velopata.
“Quem?”
“Eddy Merckx. O belga que venceu tudo o que havia para vencer enquanto fumava um maço por dia.”
“Ah… Não. Assim de repente só ´tou a ver aquele que andava todo drógado, o… O… O Luís Armstrong.”
O Velopata não respondeu, preferindo remeter-se ao silêncio enquanto trocou olhares cúmplices de chacota com O Facho e AAA, secretamente agradecendo por aquela exótica ave rara não ter proferido em alta voz o nome de Aquele-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.
“Mas olhe lá uma coisa, posso fazer uma pergunta?” – continou o Campino Tóxcóindependente.
“Já não está a fazer?”
“Hã?”
“Diga lá.”
“Eu ´tou aqui todo vestido e você ´tá aí de calções de licra… Você não tem frio? Eu estava a morrer de frio se tivesse de calções!”
“Os ciclistas são feitos de outra cepa. Além de que a perna vem a trabalhar e não tem frio.”
“Você vem de onde?”
“Faro.”
“No Algarve?”
“Não, no Allgarve.”
“Hã?”
“Sim, Faro no Algarve.”
“Ah, já lá passei bons tempos. Trabalhava na distribuição de carvão e…”
Aquele cérebro claramente deficitário em oxigenio continou a navegação pelo álcool e estupefacientes, ficando o Velopata a saber que os pais do moço eram nativos de Vendas Novas enquanto ele… Bem, aquilo foi cá uma confusão de monólogo que o único facto que o Velopata percebeu é que esta era efetivamente uma espécie de ave rara e migratória, tendo vivido e trabalhado e provavelmente sido despedido um pouco por todo o Portugal.
Sentindo que o Velopata já não estava disposto a prestar-lhe mais atenção, o Campino Tóxcóindependente regressou ao interior do The Lord of the Bifanas onde deve ter extravasado a sua admiração por este vosso companheiro, palhaço e amigo do duro circo que é a vida do pedal, pois todos os transeuntes se viraram na direção do exterior, percebendo-se pelos seus olhares que teriam dúvidas sobre se a história do Campino Tóxcóindependente não se trataria apenas de mais uma alucinação sua ou se efectivamente aquele bonito homem vestindo bonitas licras no exterior estava realmente a caminho de uma pedalada de setecentos quilómetros.
O Facho aproximou-se do Velopata;
“Carvão é no que aquele gajo tinha o cérebro transformado. Seguimos viagem ou não?”
“Mas que cromo raro.” – disse ainda AAA.
“Qual cromo… Assim que entrámos lá dentro topei-lhe logo a pinta. Aquilo é esfregona.”
“Esfregona?” – questionaram Velopata e AAA em uníssono.
“Sim, só serve para os restos e para limpar o chão.”
Capítulo VII
A Ponte sobre o Rio Kwai-te empenar
Pelas sete horas da matina, o trio lançou-se ao alcatrão, com o plano velopático ligeiramente alterado devido a compromissos técnico-táctico-familiares de AAA; fariam uma primeira paragem em Torres Vedras junto da estátua da última encarnação terrena de Nosso Senhor Joaquim Agostinho para fotos, seguir-se-ia Silveira onde seus restos mortais repousavam para uma sentida homenagem (e mais fotos), posteriormente AAA regressaria ao conforto do lar enquanto o Velopata retornaria à Cidade Santa para carregar nos morfes em antes de iniciar o percurso no sentido contrário, de volta ao reino algarvio.
E que conforto seria o que o lar prometia; volvidos escassos minutos da pedalada e o Velopata e sua grande (mas sempre bonita, mesmo que já ligeiramente torcida), boca, voltaram a fazer das suas;
“Pelo menos a chuva e o vento amainaram!” – notou o Velopata.
Nem de propósito.
O Velopata não sabia ainda, mas o vento e chuva que se alevantaram com um novo e forte vigor, transformaram aqueles quilómetros no que foi sem sombra de dúvida, o segmento mais desesperante da Cicloperegrinação.
“Ei, sabes como é o ditado… Peregrinação molhada é peregrinação abençoada!” – lembrou AAA.
“Msdfafjfnjknajcvd…” – foi a resposta velopática que deixaria Mutley orgulhoso.
Por sugestão de AAA, o trio desviou da Estrada Nacional 10 para uma alternativa onde os madrugadores selvagens enlatados existiam em menor abundância, apesar da desconfiança velopática não fosse tal tratar-se apenas de mais uma reptícia jogada do opressor jugo tirânico enlatado, tendo pago a AAA para fazer usufruto dos seus dotes de bordoada e quiçá ocultação de cadáver, guiando Velopata e O Facho para estradas onde o número de testemunhas seria menor.
Essa estrada, que nem nos mapas strávicos se encontra referenciada, era bastante agradável e prazerosa de pedalar, calcorreando terrenos agrícolas e algumas zonas que lembravam pequenos pântanos (os batráquios iam adorar), exceptuando aquela fragância a estrume que pairava na atmosfera.
Ainda por cima estrume encharcado, que é só muito mais agradável.
Passando Canha, o trio virou à esquerda e regressou à Estrada Nacional 10 onde o vento e chuva não deram uma ínfima trégua a um pobre Velopata.
“Deixa-te estar aí atrás na roda que é para isso que vim. Dou-te uma ajuda!” – berrou AAA.
“Que nada! Velopata que se preze passa sempre pela frente e…”
Uma amuada São Pedro, claramente no auge do seu devaneio menstrual, enviava rajadas laterais que faziam a roda da frente vacilar e tremelicar constantemente, tornado necessária toda a concentração velopática para evitar o esbardalhanço e assim reduzindo a conversa do dueto a um mínimo.
“Isto também não devem faltar muitos quilómetros para Vila Franca de Xira, certo?” – questionou um esbaforido Velopata, começando a sentir aqueles primeiros sintomas de desaustino face ao que o aguardava, previsto pela análise do mapa strávico – seriam longas rectas a sofrer à chuva e ao vendaval lateral até se atingir Vila Franca de Xira.
“Sim, devem ser aí uns cinco quilómetros” – retorquiu AAA.
Ora o Velopata desconhece os dotes policiais de AAA, mas o que ele sabe agora é que os seus dotes para medição de distâncias não são dos mais… Enfim, assertivos. É que na berma da estrada, finda a resposta de AAA, uma placa indicava que seriam vinte e cinco quilómetros até Vila Franca de Xira.
Vinte e cinco quilómetros de puro sofrimento e horror e desalento e desaustino velocipédico.
Aqui e ali materializavam-se os primeiros sinais de que o Velopata se encontrava a caminho da que é realmente uma Cidade Santa da velocipedia, traduzindo-se estes sob a forma de vários grupos de rijos ciclistas que praticavam a sua domingueira pedalada no sentido contrário.
“Malta rija esta.” – apontou o Velopata.
“É, vais gostar. Aqui o ciclismo é levado a sério e há muita malta a pedalar todos os dias.” – retorquiu AAA.
“Nem é por isso.”
“Então?”
“Com estas condições metereológicas do mais adverso que há, se fosse lá em baixo no reino dos algarves não se veria vivalma na estrada. Aqui, parece que não param de passar!”
“É, aqui a malta é mesmo rija!” – reforçou AAA.
“Isto não é ser rijo.”
“Então?” – inquiriu AAA.
“Isto é ser-se masoquista.”
AAA não respondeu, simplesmente lançando um sorriso na direção do Velopata pois no horizonte, por entre as gotas de chuva batida a vento que toldava a visão, conseguia vislumbrar-se a ponte que marcava a chegada a Vila Franca de Xira – seriam só mais uns quilómetrozecos de hercúleo esforço e mais um segmento estaria cumprido.
O mui querido leitor conhece os grandes Monthy Python?
Conhece o seu intemporal clássico Monthy Python & The Holy Grail?
Nessa aclamada película de comédia medieval, uma sequência há onde às portas de um castelo, dois guardas armados assistem enquanto um invasor corre na sua direção, no entanto, o espectador não consegue refrear gargalhadas quando percebe que por muito que o atacante corra, parece nunca sair do mesmo sítio, permanecendo os guardas impávidos e serenos.
A comparação é óbvia; esse mafarrico que corria sem nunca saír do mesmo sítio… Era o Velopata.
E o castelo era a ponte para Vila Franca de Xira.
A grande diferença para a referida película é que nesta não chovia copiosamente e o atacante não se munia de uma Estrela Vermelha, que dificilmente passava dos 20 Km/h, mesmo sendo a estrada plana e até em ligeira descida, dada a força do vendaval lateral que se sentia.
O mui querido leitor não deverá ter dúvidas quando o Velopata escreve que de todos os momentos da Cicloperegrinação, este foi certamente um dos segmentos mais excruciante e angustiante e deprimente e sofrido e coiso que ele experienciou, levando-o mesmo a questionar-se sobre a imbecilidade de tamanha demanda.
Por muito que pedalasse, a sensação velopática é que aquela ponte não se aproximava, mantendo-se sempre à mesma distância no horizonte.

Mas esta é a beleza e solicitação com que o mais nobre dos desportos brinda aqueles que a ele se dedicam – um interminável carrossel de emoções.
Ora se está bem, um moço sente-se na mó de cima e somos os maiores e o camandro, ora se está na mó de baixo e sentimo-nos uma miséria capaz de fazer corar as grandes lendas de outrora ao dizermos que praticamos o mesmo desporto.
E se este troço da Cicloperegrinação fazia sentir os seus dolorosos efeitos sobre o Velopata, como o mui querido leitor lerá, a coisa só podia piorar.
E muito.
Capítulo VIII
To serve and protect and… Achincalhate
A passagem por Vila Franca de Xira foi breve mas não sem a sua dose de atribulações, como certamente qualquer adepto das duas rodas a pedal sem motor sabe que a pedalada por uma grande cidade é.
E novamente, o Velopata vê-se forçado a enaltecer as nobres capacidades de AAA, desta vez não ao nível da medição de distâncias mas sim no que à orientação respeita.
Chegados a uma bifurcação regida por sumáfros, AAA seguia na frente brincando com a sua geringonça gármica, levando a uma péssima colocação do dueto na estrada ao circular pela faixa da direita que obrigaria a virar à direita, quando na realidade o Garmin indicava que deviam seguir em frente. Só tardiamente AAA percebeu isso e com o sumáfro vermelho (ou encarnado), o dueto viu-se forçado a cessar momentâneamente a pedalada, aguardando pela abertura do sinal luminoso pois apesar de machos ciclistas, ambos os dois não sofrem de daltonismo.
O problema é que o sumáfro verde se acendeu para quem desejava virar à direita em antes do sumáfro para os que seguiam em frente.
E Velopata e AAA ali imobilizados, atrapalhando a vida domingueira a um único enlatado na sua retaguarda que felizmente devia ser um dos poucos enlatados com quem o Velopata cruzou caminho durante a Cicloperegrinação, detentor de algum bom senso e não iniciando protestos e buzinadelas e apupos às mães de Velopata e AAA.
E aqui o Velopata é forçado a agradecer a simpatia e generosidade e disponibilidade e amabilidade e coiso de um enlatado patrulha e respectivos agentes de uma força policial, que o Velopata não pode aqui partilhar o nome por sérios riscos de represálias ao nível judicial, deixando apenas as iniciais; P.S.P., que parados à esquerda do dueto, sendo eles os primeiros à espera que o sumáfro para seguir em frente abrisse e verificando a enrascada situação em que o dueto se havia metido, o que decidiram fazer?
Aplicar a bela da ríspida ensaboadela.
“A´tão mas vocês não verem que estão aí mal?” – vociferou um Agente da Autoridade notóriamente almariado e craque na língua de Camões.
“Desculpe Senhor Guarda, eles não são daqui e estão um pouco perdidos.” – respondeu humildemente o Velopata.
“Lá porque estão perdidos não é razão para não cumprir o Código!”
“Pois Senhor Guarda, tem razão.”
O Velopata sabe que a profissão de Agente da Autoridade não é de todo fácil, são mal pagos e forçados a lidar com grande parte da corja da sociedade logo, o correcto modo de abordar uma situação destas é agir como fazem os canídeos submissos e deitar-se de barriga para cima, soltando umas pinguinhas de urina sobre o próprio ventre de modo a mostrar que são eles o macho alfa da coisa.
O problema é que com este Agente da Autoridade, não havia pinguinha de urina que lhe valesse;
“Pois claro que tenho razão. Que mania que vocês ciclistas têm, a estrada não é toda vossa.”
“Sim, desculpe, é que eles estavam mesmo perdidos e…”
“Estavam perdidos mas o Código é para cumprir. Não têm nada que andar para aqui a atrapalhar a vida das pessoas pá!”
O Velopata já estava a ver o filme desenrolar-se diante de seus bonitos olhos castanho-esverdeados; o marafado Agente da Autoridade ia perder a paciência e saíndo do enlatado patrulha descarregaria toda a sua frustação aplicando uma valente coima para além de uma série de vardascadas no lombo velopático. E certamente com o cacetete virado ao contrário.
Sem saber mais o que dizer, enrascado como quem está mesmo à rasca, o Velopata olhou para AAA, esperando que por ser colega de métier destes, pudesse intervir e ajudar a resolver a situação pelo melhor, evitando um sarau de bordoada.
Mas AAA ficou calado.
Belos amigos que o Velopata arranja para pedalar, não?
Por sorte o sumáfro abriu e o enlatado patrulha arrancou mas não sem antes o Agente da Autoridade vociferar;
“Estes gajos das bicicletas são sempre a mesma merda pá…”
Irritado até às suas mais profundas partículas subatómicas, o Velopata notificou AAA e O Facho que chegava a hora de mais uma pit stop com o objectivo de repôr energias findo o excruciante segmento de acesso à Ponte sobre o Rio Kwai-te Empenar, mas principalmente para extravasar toda a tensão acumulada com o auxílio da fumaça de um cigarrinho.
“Achas isto normal?” – protestou o Velopata enquanto pedalavam em busca de um tasco.
“Epá, isto é malta do turno da noite… Sabes como é…” – retorquiu AAA, tentando de algum modo justificar a injustificável atitude de seus colegas de métier.
“Não, não sabe. Ele nunca andou num enlatado patrulha a acompanhar o turno da noite, mas o que lhe parece é que as forças policiais não devem tratar quem lhes paga o ordenado assim. Não são os amaricanos que dizem que a função da Polícia é to serve and protect? Aquilo foi só achincalhanço gratuito quando podiam perfeitamente ter pedido que fossemos para a frente deles porque havia espaço e voilá, o problema ficava resolvido!” – ripostou o Velopata.
“Não sejas assim. Esta malta tem de aturar muita coisa durante a noite. E se a coisa ficasse mais azeda eu identificava-me. Olha está ali um café com esplanada, paramos aqui?”
Desaustinado, o Velopata não pode deixar de reflectir sobre a diferença entre estes policiais citadinos e o esquadrão Hot Fuzziano que ele encontrou no Torrão (se não leu a primeira parte, porque está o mui querido leitor a ler o final?).
Mas quanto às forças policiais de Vila Franca de Xira, uma última surpresa ainda aguardava o Velopata.
E esta, ao contrário do habitual, não foi de todo… Ignóbil.

Se dúvidas o Velopata ainda tinha quanto à hospitalidade vila franquense de xirense, o que dizer quando dirigindo-se ao balcão da cafetaria para pedir três recargas cafeínadas, ele assiste enquanto três jovens de um misto de etnia africana com mitra, entram depois dele e são atendidos primeiro?
Curiosamente, a empre… Funcion… Colaboradora por trás do balcão não pertencia à etnia mitra (era apenas africana), e o Velopata não pode deixar de relembrar por breves instantes, porque razão se escapuliu da vida na capital e emigrou para o reino algarvio.
Mais uma vez o Velopata optou pela solução canídea, decidindo não arranjar confusão até porque AAA já o tinha notificado que não vinha armado, certamente ao contrário da mitralhada que mesmo não estando nos USofA, onde certamente viriam armados de metralhadoras M-16, lança-granadas e bazucas para tomar o pequeno-almoço, certamente xinos e naifas de diversos tamanhos e feitios era o que não faltaria por aqueles bolsos.
Findas as recargas cafeínadas e o aliviar da alma de todas as sucessivas faltas de respeito com recurso à nicotina, o trio lançou-se novamente ao alcatrão na direcção do que os perfis strávicos pareciam apontar ser uma boa dose de acumulado.
Capítulo IX
O Passeio dos Tristes
Aquilo não era uma boa dose de acumulado.
O que se seguiu foi sim uma liquidificadora de pernas em formato alcatroado; subidas atrozes, descidas violentas, depois subidas ainda mais atrozes que pareciam não ter fim, depois descidas ainda mais violentas capazes de fazer o mais corajoso dos enlicrados ressabiados de fim de semana suster a respiração enquanto contrai o esfíncter e espera que a trajectória escolhida o leve a bom porto.
E o sofrimento sempre exponencialmente magnificado pela teimosa chuva e o inóspito e gelado vento lateral que não se permitiam uma única trégua.
Atingindo a marca dos 334 quilómetros, fruto das excruciantes subidas para além da quilometragem já embutida no escanzelado corpo velopático aliada à adversa metereologia, o desalento começou a tomar forma na mente velopática. É que a juntar a todos estes referidos factores, dois pormenores se destacaram neste segmento do percurso;
- a quantidade de ciclistas com que o trio se cruzava, particularmente no final das agonizantes subidas que o duo completava, não podendo o Velopata deixar de reparar que a grande maioria trazia expressões faciais a acusar o iminente fanico misturado com esgares de empeno, o que só o motivava a reflectir sobre a agonia que o aguardava no regresso;
- a selvajaria enlatada.
Cada vez mais próximos da Cidade Santa, na sua ingenuidade o Velopata acreditava que o respeito pelos mais nobres pseudo-atletas praticantes do mais nobre dos desportos seria… Vá, ligeiramente superior ao que se observa pelas restantes estradas deste país.
Como ele estava enganado.
De todos os segmentos percorridos durante a Cicloperegrinação, este foi sem qualquer sombra de dúvida, aquele onde a selvajaria enlatada se manifestou em toda a sua… Selvajaria.
Eram razias de todo o lado; pela direita, pela esquerda e o Velopata até aposta que se esse mafarrico do Tesla já lhe tivesse dado para inventar latas voadoras , Velopata e AAA teriam certamente levado razias por cima de seus capacetes.
A coisa chegou a um ridículo ponto tal que a dado momento, aproximando-se de um sumáfro vermelho, ou encarnado, o dueto sobreviveu a uma daquelas razias que abana cérebro e contrai esfíncter, protagonizada por um enlatado cheio de pressa demais para chegar à fila de latas que já se aglomeravam no sumáfro, ganhando uns espectaculares três segundos de avanço ao duo com aquela asinina manobra.
A piada, que pouca ou nenhuma graça tem, é que esse enlatado era muito provavelmente conduzido por um ciclista – a lata encontrava-se munida de três suportes da Thule no tejadilho.
“EPÁ, MAS O QUE É QUE ISTO?” – bradou aos céus um Velopata já farto de tanta falta de respeito e civismo, findas mais uma série de razias.
“Aos domingos esta estrada é lixada. É por aqui que toda a malta da zona tem acesso às praias de Santa Cruz e da Ericeira.” – explicou AAA.
“Ele não sabe se tu já reparaste mas… Está um excelente dia para a prática de praia!” – notou um sempre forte em sarcasmo Velopata.
“Sabes como é, mesmo não estando bom tempo para a praia, a malta gosta de vir para aqui passear.”
“É aquele famoso Passeio dos Tristes?”
“Sim.” – acenou afirmativamente AAA.
“Já viste como esta maralha enlatada é mesmo de uma tristeza que dá dó? Até para passear conduzem cheios de pressa!”
“CUIDADO!” – berrou AAA.
Como é certo e sabido pela ancestral cultura popular – um mal nunca vem só.
O dueto entrava num segmento onde muito provavelmente o alcatrão havia sido importado de uma qualquer movimentada rua iraquiana e onde toda a atenção era necessária para conseguir pedalar em segurança através da estrada que aqui e ali existia por entre as crateras.
“Então mas ó Velopata, e O Facho? Ele não vos conseguia proteger durante todo esse festival de atrocidade enlatada?” – questionará o mui atento leitor.
O pobre O Facho bem tentou manter a Lata de Apoio Velopático na rectaguarda do dueto, o problema é que na região em questão, as estradas não são propriamente largas e as buzinadelas, vaias e apupos à sua mãe foram tantos que, salvaguardando a honra da profissão da mesma (que se deve notar não foi nem nada próxima do que os pouco cívicos enlatados pareciam berrar), levaram a que ele não pudesse acompanhar Velopata e AAA, optando por seguir mais à frente e parando onde pudesse para não se distanciar muito.
Fruto de tudo isto, Velopata e AAA forçaram o ritmo, tentando cobrir a já parca distância que os separava da Cidade Santa o mais rapidamente possível.
Atingindo Runa, não devendo esta ser confundida com nenhum alfabeto germânico, arte divinatória nórdica ou até mesmo o nome pelo qual um animal de estimação da tribo urbana gótico-satânica responde e sim o lugar/aldeia/vila/vilarejo/coiso em antes de Torres Vedras, AAA notificou Velopata que a sua bexiga começava a retesar e a paragem era obrigatória.

Retomando a pedalada, eis que os céus se abriram, o ciclo menstrual de São Pedro passou e como que abençoando a chegada velopática à Cidade Santa, a chuva cessou e o vento amainou como quem amaina mesmo.
Com 342 quilómetros percorridos em 17 horas e 41 minutos, o Velopata chegava a Torres Vedras são e salvo e a sentir-se… Mais ou menos vivo.
Hoje ficaremos por aqui.
Mas em antes que o côro de protestos se alevante pelo facto do Velopata não finalizar a totalidade do seu histórico empeno, o mui querido leitor deve lembrar que mesmo não sendo ele um moço muito dado às modas, há que seguir as tendências comerciais como fazem na terra da Madeira Sagrada (Hollywood, em cámone), tendo assim optado por dividir em duas partes este último texto que todos os respeitantes à Cicloperegrinação encerra.
Na próxima semana há mais.
Abraços velocipédicos,
Velopata
Link para a Cicloperegrinação strávica: https://www.strava.com/activities/1616531338
O Facebook do Velopata: https://www.facebook.com/velopata/
O Instagram do Velopata: https://www.instagram.com/blogdovelopata/?hl=pt
Pingback: Uma (des)abençoada Cicloperegrinação – o capítulo final que é mesmo final – Blog do Velopata