“Aaaaaiiiiii!” – esganiçadamente berrou o Velopata a plena capacidade pulmonar, superior à utilizada durante a mítica subida ao Alto do Malhão.
“Não sejas maricas. Está quieto.” – retorquiu a Srª Velopata.
“Ele está quieto.”
“Então não grites que o teu filho está a dormir.”
“Mas como queres que ele não grite se estás aí a escarafunchar as feridas de guerra dele?”
“Como é que tu queres que eu faça isto?”
“Com amor. Com carinho.”
“Não sei como é que se mete Betadine numa ferida com amor e carinho.”
“Também não, mas assim não é de cert… Aaaaaiiiii!”
O Velopata voltou a urrar à sua FTP máxima enquanto a Srª Velopata tentava desesperadamente desinfetar e recauchutar a parte frontal da anca do somali corpo velopático, onde agora faltava um valente naco de chicha, uma de entre as várias consequências da queda sofrida na edição da Odisseia Algarvia do presente ano de Sua Santidade Joaquim Agostinho de 2017.
“Devias ir ao médico, isto parece-me que tem de levar pontos.” – continuou a Srª Velopata enquanto colocava uma compressa de não-tecido na ferida.
“Isso é esquisito.”
“O que é que foi agora?”
“Essas compressas. Ai. São esquisitas. Ai.”
“O que têm?”
“São em não-tecido.”
“Qual é o teu problema com as compressas?”
“Olha, uma bicicleta pode ter o quadro em titânio, alumínio ou carbono. Não existem bicicletas com quadros em não-titânio, não-alumínio ou não-carbono. Então os gajos inventam estas compressas e não sabem de que são feitas?”
“Deves mesmo precisar de pontos aí, a compressa já está toda ensanguentada.”
“Deita essa fora e mete outra.”
“E vou ficar aqui a noite toda até isto parar de sangrar?”
“Não fazias esse sacrifício por amor?”
“Não sejas estúpido.”
“Além de que ele detesta agulhas.”
A Srª Velopata tirou os olhos do dantesco lenho na anca velopática, fitando o Velopata antes de continuar, notoriamente em tom irónico-jocoso;
“Um gajo com um metro e oitenta, tatuado e com piercings, tem medo de agulhas? Mas és um homem ou és um rato?”
“Xic. Xic.” (onomatopeia do som que o Velopata produziu, tentando imitar o famigerado roedor)
Algumas compressas, urros extra de dor, lençóis bodegados (com inúmeros protestos da Srª Velopata), e uma noite de insónia depois, lá foi um comiserado Velopata a caminho do Veterinário.
“Queres que entre contigo?” – questionou a Srª Velopata enquanto o trio velopático aguardava o chamamento do Velopata na sala de espera das Urgências Veterinárias.
“Claro que ele quer que entres com ele!”
“Já viste o aspecto que isso vai dar? Um homem desse tamanho…”
“Ele já sabe, um metro e oitenta, tatuagens e piercings… Sabes uma coisa? Por detrás de grandes homens há sempre grandes mulheres. Einstein, Hemingway, Stephen Hawking.”
“Que raio de exemplos são esses?”
“Foram grandes homens com uma enorme paixão pelas bicicletas e todos tinham o apoio de grandes mulheres.”
“O Stephen Hawking não anda de bicicleta.” – notou a Srª Velopata, com aquela sua fofa expressão de sobrolho franzido.
“Não, mas também passa a vida sobre duas rodas. O Velopata até aposta que aquelas rodas da cadeira dele são Mavic Turbo Ksyrium Star Space Aero Elite Cosmic.”
“Pensava que ias dizer que eram em carbono.”
“És linda.”
(Nota do autor: Desde já o Velopata aproveita para passar aqui um pouco de graxa à Srª Velopata pois vem aí despesa médica com a Estrela Vermelha.)
Fruto da pouca quantidade de enfermos que se encontravam nas Urgências, o trio velopático pouco tempo aguardou até que o Velopata fosse chamado.
“Herr Rodrigo, poderr entrrarr.” – notou a Veterinária, apontando a porta do consultório.
Era só o que falta ao Velopata.
Uma Veterinária ze german.
Com alguma sorte, ela convencer-se-ia que a aeropenca e o nome de família velopático seriam de descencência judaica e deixaria o Velopata em pior estado do que já se encontrava, fruto de um qualquer ressabio familiar dos seus pais, ferrenhos jumentos nazis.
“Então qual serr o prrublema? Cair du mota?” – lá poder de observação a Veterinária tinha, observando a escalafrada mão velopática.
“Cruzes canhoto, veículos primitivos de duas rodas, jamais!” – rematou um Velopata indignado.
“Não estarr a perrceberr.”
“Isto não foi bem uma queda, foi… Uma tentativa de vôo.”
“Não ligue Doutora, ele caíu da bicicleta e não sei se também não terá batido forte e feio com a cabeça.” – pelo menos existia alguém são naquele consultório, a Srª Velopata.
Seguiram-se momentos de tensão enquanto o Velopata contava a sua grandiosa saga à ze german e esta lhe inspeccionava as duras marcas da batalha perdida com o asfalto. A séria expressão que assolava aquela face germânica piorava à medida que o Velopata desbravava as várias partes corporais afetadas; mão direita escalafrada, pulso direito incapaz de ser movido em que direção fosse, cotovelo carregado de esfoladelas e o ex-libris que era o gigantesco naco de chicha ausente da perna.
Nervoso, o Velopata não pode deixar de pensar nas várias possibilidades que se seguiriam;
– Aquela ze german ia mesmo inspeccionar o velopático corpo… Todo nú?
– Conseguiria ela manter a compustura, respeitando o código deontológico, ante tão bela visão que é o etíope corpo velopático desnudado?
– Seria ela uma descendente de asnos nazis?
– Estariam as feridas em pior estado do que o Velopata acreditava?
“Precisarr de fazerr raio-x du mão. As ferridas vão serr tratadas porr nossas enferrmeirras, mas ferrida du perrna parrecerr muito mal.” – terminou ze german, encaminhando o Velopata para um outro corredor onde uma Enfermeira toda supimpa acompanhou o Velopata até à etapa seguinte; o raio-x.
Uma minúscula salinha com uma gigantesca máquina no centro na qual o Velopata foi instruído pelo Técnico sobre como colocar o dorido pulso para que o exame se processasse.
E mais uma vez o Velopata hesitou, nervoso.
É que enquanto cria, o Velopata leu livros da Marvel, ficando a saber que a exposição prolongada a radiação deste calibre foi a génese de Senhores Fantásticos e Hulks, entre outros. Que poderão ser muita coisa mas o Hulk não é um gajo levezinho – levar toda aquela musculatura verde serra acima parece complicado; já o Senhor Fantástico tem certamente problemas de rigidez lateral.
Findo o exame, o Velopata inquiriu o Técnico sobre a possibilidade de levar lá a Estrela Vermelha para examinar a integridade carbónica do quadro. Saíria mais barato à esmifrada carteira velopática e seria, sem dúvida, mais rápido que levá-la às Urgências da G-Ride, onde seria encaminhada para o País Basco, terra natal da Estrela Vermelha, realizando-se toda uma bateria de testes ao lindo quadro.
Infelizmente a máquina estava calibrada apenas para a deteção de problemas em ossos humanos logo, tal não seria possível.
Uma vergonha e desperdício de máquina de raio-x, na humilde opinião velopática.

Novamente acompanhado pela Enfermeira supimpa o Velopata foi levado até um novo corredor onde lhe foi indicado que aguardasse a chegada das enfermeiras que lhe tratariam as feridas.
O Velopata exalava tensão pois neste novo corredor nem sinal da Srª Velopata que, após aqueles segundos onde o cérebro velopático navegou na maionese procurando-a, enviou uma mensagem ao Velopata avisando que tinha seguido para a sua lata onde mudaria a fralda e amamentaria o Velopatazinho.
Era pois oficial; o Velopata teria de suportar a que se previa longa e dura jornada de tratamento das suas feridas de batalha… Sozinho.
Duas simpáticas moçoilas vestidas de equipamento branco aproximaram-se do Velopata, indicando que as deveria acompanhar até à sala onde a jornada de tortura épica se desenrolaria.
Claro que como bom macho que é, o Velopata percebeu logo o filme todo; debaixo daquelas desenxabidas batinas brancas as Enfermeiras usavam lingerie do mais sexy que há, restando saber se também elas seriam capazes de respeitar o código deontológico da sua Ordem, ante a presença do corpo de Deus Etíope que este vosso amigo tem o fardo de carregar.

Deitado na marquesa, o Velopata esforçou o seu já mais-que-alerta-e-pronto-a-urrar cérebro a desviar a atenção para fofinhas imagens mentais, truque muito utilizado pelos Yogis que, descobriu o Velopata recentemente, não são uma marca de iogurte e sim a malta que pratica o Yoga.
Uma Cannondale SuperSix Evo toda Ultegra ou até uma clássica Colnago pendurada na parede do seu lar e…
“Aaaaaiiii!” – berrou o Velopata a 110 ou 120% da sua FTP máxima quando uma das enfermeiras esfregou a ferida na anca velopática com uma compressa (se esta era tecido ou não-tecido o Velopata nunca chegou a saber), aparentando estar embebida em Vodka do Lidl e não soro fisiológico, dada a capacidade de fazer o Velopata acreditar que a sua anca estava em chamas. É que até a chicha em torno da ferida borbulhava.
Apreensivas, as belas enfermeiras debruçaram-se sobre o lenho velopático. Uma nova compressa deslizou sobre a anca velopática, forçando o Velopata a novo gemido pois a sensação não era a de tecido, ou até mesmo não-tecido, a passar pela anca. Aquilo parecia sim, um ralador. Já a súar as estopinhas, o Velopata começou a súar mais , como quem súa mesmo, após ouvir uma das formosas enfermeiras questionar a outra;
“Achas que é preciso desbridar?”
“Talvez, estes pedaços de carne podem ter de ser removidos.”
“COMO É QUE É? DESBRIQUÊ?” – berrou o Velopata claramente na eminência de um ataque de nervos, esfíncter contraído e bexiga retesada.
“Calma que não é nada do outro mundo Senhor Rodrigo. Desbridar é um procedimento cirúrgico necessário quando há tecido necrótico ou mesmo resquícios de alcatrão ou roupa misturados com as feridas. Quando isso acontece têm de ser removidos, caso contrário, podem infectar.”
“AQUI NINGUÉM VAI ARRANCAR NACOS A NINGUÉM! MAS ISTO É UM VETERINÁRIO OU UM RODÍZIO DE PICANHA?!?!” – dizer que o Velopata estava à rasca não faria jus ao sentimento que percorria o corpo velopático.
“Tenha calma! Prefere ficar aí com tecidos mortos que lhe podem provocar uma infecção ou até uma gangrena e aí sim, fica sem pedalar uns bons meses?”
“Cortem tudo!” – ouvir que se pode ficar sem pedalar uns bons meses é razão mais que suficiente para o Velopata.
Seguiu-se um silêncio tremendamente desconfortável enquanto ambas as duas moças, que já não pareciam tão formosas ao olhar velopático, inspeccionavam a ferida. Quanto ao Velopata… A contracção esfíncteriana estava no limite, a bexiga retesava e voltava a retesar, como quem retesa mesmo, podendo o Velopata jurar que se libertaram algumas pinguitas de urina. Mesmo não sendo religioso, o Velopata rezava a todos os santinhos conhecidos; Bartali, Coppi e Agostinho, pedindo clemência para com este seu humilde padawan.
“Pode descontraír… Analisando a sua ferida, não me parece que seja necessário o desbridamento. Teve sorte.” – tranquilizou uma das jovens enfermeiras.
Esfíncter descontraído e respirando de alívio, o Velopata agradeceu a intervenção divina das lendas velocipédicas de outrora por o terem salvo da gigantesca humilhação de gritar, berrar, uivar e chorar baba e ranho ante tão belos exemplares de formusura feminina, durante um procedimento veterinário que se previa mais horrível que subir o Monte Ventoux sem poder engrenar outro que não o prato 53 e o carreto 11.
“É… Ele teve cá uma sorte…” – rematou o Velopata em modo ironia desgraçada.
“Claro que teve sorte, sabe que também eu já tive uma valente queda de bicicleta?”
O Velopata reparou na moça que, pelo simples facto de saber que também ela era adepta das duas rodas sem motor, instantâneamente voltou a ser formosa.
“Bêtêtê ou Estrada?” – questionou o Velopata.
“Nem uma, nem outra. Usava a bicicleta como meio de transporte para o trabalho.”
“E é assim que deve ser mas, o que aconteceu?”
“Caí com tal violência que todo o lado direito da minha cara desapareceu. A única pele que sobreviveu à queda foi a pálpebra do olho direito.”
“Sério?!?! Ninguém diria, olhando para a sua face que é bem bonita.”
“Estive meses internada na Unidade de Queimados. Nem sabe o que passei… Por isso é que digo, olhando para si, até teve sorte.”
“Então e agora já não pedala?”
“Nunca mais.”
“Ficou traumatizada? Sabe que a melhor maneira de enfrentar o med… Aaaaaaiiiii!”
Se a formosa enfermeira fez de propósito para que o Velopata fechasse a matraca sobre aquele assunto que claramente mexia com os seus sentimentos, medos e traumas do passado, o Velopata não sabe, certo é que a colocação do penso sobre a ferida doeu mais que uma subida à Senhora da Graça, qualquer que fosse a mudança engrenada.
Findo o tratamento das feridas, o Velopata despediu-se das formosas enfermeiras dando graças por elas se terem contido ante a visualização deste espectacular corpo de Deus Somali e não o forçando a dar-lhes uma nega, pois o único pensamento que lhes atravessava a mente era forrobodó com este vosso compincha.
De regresso ao consultório inicial, foi com enorme apreço que o Velopata descobriu que ze german já não se encontrava de serviço e que seria agora atendido por um Veterinário que dir-se-ia acabadinho de saír do liceu. Fora de gozos e brincadeiras, se perguntassem a idade do Veterinário ao Velopata, ele responderia “aí uns 20 anos”.
Em antes que o Veterinário pudesse dizer alguma coisa, o desespero levou o Velopata a interrompê-lo com as únicas questões que trespassavam a sua mente;
“Antes de tudo Doutor, responda-lhe já a uma coisa; há algum osso partido?”
“Não se preocupe, com os ossos está tudo bem.” – retorquiu o jovem de batina azul.
O peso de uma bicicleta Team ou EMT, daquelas que pululam pelos hipermercados, saíu dos ombros velopáticos. Afinal, existiam razões para sorrir e o Velopata até tinha mesmo o seu je ne sais quois de sorte.
“Quanto tempo sem pedalar?” – esta é que era a verdadeira e única questão.
“Só o tempo o dirá mas pelo inchaço do seu pulso… Aí umas duas semanas.”
“Deve ser…” – comentou o Velopata entredentes.
Com os últimos conselhos do Young Doctor, o Velopata ficou a saber que após a passagem do inchaço do pulso, se certos movimentos não pudessem ser efectuados, provavelmente seria necessário algum tipo de fisioterapia, não fosse algum músculo, nervo ou tendão ter saído danificado da vã batalha com o alcatrão. Mais; num longínquo futuro, o pulso poderia trazer problemas como dores com a mudança do clima, facto que o Velopata não acredita ser assim tão mau – sendo ciclista, ter um osso que dá aquela moínha quando o tempo vai mudar tem a sua practicidade, dispensam-se as constantes consultas aos sites de metereologia.
Regressado à sala de espera das Urgências Veterinárias, o Velopata encontrou a Srª Velopata e Velopatazinho que aguardavam o seu regresso.
“Então, como estás?” – questionou uma preocupada Srª Velopata.
“Ué. Uó.” – também questionou o Velopatazinho.
“Ele está bem mas foi cá uma aventura…”
“Então?”
“Bem… O Velopata foi levado por uma enfermeira que a meio do caminho para o raio-x tentou convencê-lo a fechar-se com ela na sala das limpezas pois disse que não aguentava o efeito afrodisíaco de um macho combalido e abatido como ele. Com muito esforço lá o Velopata a conseguiu convencer que estava incapaz de tais actos. No raio-x, o moço foi muito antipático e não quis fazer um exame à Estrela Vermelha porque disse que a máquina só dava para ossos. Um tangas. Depois vieram duas enfermeiras que queriam fazer um tratamento ao Velopata como na música dos Da Weasel. Foi um filme livrar-se daquelas duas aves necrófagas! No final ainda foi atendido por um veterinário que nem barba tinha e o Velopata desconfia que vai na volta ainda é como aqueles casos que viu na televisão de malta que se faz passar por médicos por sofrerem de uma sinistra esquizofrenia qualquer.”
“Sabes uma coisa?”
“O quê?”
“Só espero que o nosso filho não seja um cromo como tu.”

PS velopático 1: O Velopata não vai aqui partilhar fotos das suas feridas pois como o querido leitor decerto já terá notado, estas publicações são partilhadas com a sua legião de fãs sempre perto da hora do almoço e com todo o respeito, o Velopata não quer estragar a refeição a ninguém.
PS velopático 2: Cinco infindáveis e longos dias depois, o Velopata já conseguia comer de faca e garfo, atar os próprios atacadores das sapatilhas e até escrever esta publicação com ambas as duas mãos. Prova de que o Young Doctor estava errado é que findos esses mesmos cinco dias, o Velopata já regressava às suas duras sessões de tortura auto-infligidas no rolo de treino.
PS velopático 3: Chega agora a pior fase do pós-queda. Levar a Estrela Vermelha ao Hospital G-Ride, acendendo velinhas de tofu e incensos de seitan na esperança de que o mal seja menor do que este que afetou o vosso querido amigo, companheiro e palhaço deste duro circo que é a vida do pedal.
Abraços velocipédicos,
Velopata
“Só espero que o nosso filho não seja um cromo como tu.” ESTA TUDO DITO… EU ATE IA DIZER MAIS, MAS SE ELA DISSE TUDO PARA QUE ESTRAGAR
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Pingback: Os Mandamentos Velocipédicos – Blog do Velopata
Bem haja ao Velopata, que apesar de tentando e assediado no reino do Veterinário por insinuantes e voluptuosas assistentes se comportou de modo elevado e distinto.
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Como pode ler, a vida não é nada fácil para um Velopata!
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