“Aí está, já arrancaram!” – exclamou um Velopata extasiado enquanto observava o monitor do seu pc.
“Quem é que já arrancou? Qu´é isso?” – questionou a Srª Velopata, observando também ela o monitor do pc mas não entendendo nem partilhando o claro entusiasmo do Velopata.
“Começou a Transcontinental Race! Arrancaram agora de Geraardsbergen!”
“Carlsberg o quê? Não vejo nada, só vejo aí um mapa e uns pontinhos com números.” – retorquiu uma Srª Velopata, não entendendo patavina do que estava à sua frente.
“São os dots, cada um destes pontinhos corresponde a um ciclista.”
“A sério que já chegou a esse ponto? Já não chegavam as intermináveis horas de seca com as coisas das bicicletas na televisão, agora já andas a seguir pontinhos num mapa no computador? Que parvoíce é essa?”
“Não digas isso até porque vai na volta… Para o ano que vem, por esta hora, estás tu aqui a ver um pontinho no ecrã e a roer o gel das unhas pois é o teu mais-que-tudo que vai lá estar na linha de partida.”
“Tu deves ser é parvo; primeiro, eu não uso unhas de gel. Segundo, vai mas é tirando o cavalinho da chuva que tu tens um filho pequeno para criar, deixa-te de ideias estúpidas.”
“Bicicletinha.”
“Hã?”
“O que querias dizer é que ele tem de ir tirando a bicicletinha da chuva.”
“Uéééééé. Uééééééé!” – o Velopatazinho percebeu a tirania que exalava pela atmosfera através da voz da sua progenitora, irrompendo no seu choro característico de sirene avariada.
“Vês? Até o Velopatazinho protesta por estares a tratar assim o seu progenitor! Pelo menos nesta família ele é o único a querer ver o pai atingir a glória velocipédica!” – atacou o Velopata em cadência.
“O que ele quer é que o pai deixe de ser cromo e lhe vá mas é mudar a fralda.”
A verdade é que a Srª Velopata, juntamente com muitos outros companheiros de pedal do Velopata, não entendem este sentimento que assola a alma velopatóide.
O chamamento do alcatrão. O horizonte longínquo a perder de vista. Pedalar dias a fio, atingir o limiar das capacidades mortais e humanamente possíveis para depois… Arranjar forças sabe-se lá onde e continuar. Uma aventura que podia muito bem transmorfar-se em livro, capa dura e tudo.
Para quem desconhece, a Transcontinental Race é considerada uma das mais duras provas velocipédicas do Universo; esqueçam Voltas a França com os seus medidores de potência e cadência e o que mais as marcas de bugigangas tecnológicas inventam, licras vistosas, bicicletas que custam várias idas ao multibanco para alevantar dinheiro com recurso a botijas de gás, barras e géis energéticos, transmissões televisivas, substâncias dopantes de nomes quase impronunciáveis, motores escondidos. A TCR (sigla pela qual a prova é conhecida entre os aficionados), é a mais pura demonstração de perna rija que homens e mulheres adeptos das duas rodas não motorizadas almejam, sendo também a experiência mais próxima que um ciclista pode ter do que seriam as Grandes Voltas de outrora, tempos em que a roda ainda era quadrada e uma só etapa facilmente atingia a marca dos 500 ou mais quilómetros.
E como o Velopata deseja tomar parte nesta alucinante prova, onde os participantes se lançam numa longa jornada de aproximadamente 4000 quilómetros (a edição actual fica-se nos 3650 quilómetros, mais ou menos uns trocos), sem nenhum tipo de suporte ou apoio, devendo o atleta escolher minuciosamente o seu percurso entre o arranque na mítica cidade/vila/aldeia/coiso de Geraardsbergen, no famigerado e bem conhecido das hostes velocipédicas Muur de Huy, famoso pela sua sempre temível presença na Volta a Flandres, e a cidade/vila/aldeia/coiso de Meteora na Grécia, alternativa mais que válida à meta de edições anteriores, algures na Turquia, fruto da instabilidade que se vive nessa região.
Apesar de depender do próprio atleta a escolha do percurso entre estes dois distantes pontos, Gerardscoiso e Meteora, a organização apresenta a obrigatoriedade de passar nos 4 postos de controlo (CP, na sigla inglesa), para picar o ponto.
Claro que a organização não deixa a pedalada por menos e os 4 postos de controlo localizam-se sempre em pontos de… flagelação tibial extrema. Monte Grappa (1775 metros de altitude), High Tatras (2655 metros de altitude), e Transfagarasan (2042 metros de altitude), são só alguns dos itens no cardápio desta edição de 2017, a 5ª desde o início desta tão nova, mas já a um nível lendário, prova.
Comer, dormir e dar banho tornam-se meros obstáculos, esquecendo-se as regras básicas da saúde; comem-se calorias à bruta, dorme-se o mínimo indispensável e onde calha, e quanto à bela da banhoca… Enfim, relatos há de atletas que nem a própria fragância corporal aguentam quando finalmente encontram um lago ou riacho, outros há que acabam por fazer check-in numa qualquer unidade hoteleira baratucha à beira da estrada para umas horas de descanso mais que merecido e um valente banho que até a alma limpa.
Em suma, o Velopata não vê a hora de se lançar numa aventura destas.
Até porque muitos saberão; este marafado espaço velointernético nasceu com o propósito de ajudar o Velopata a realizar este sonho que é passar as passinhas da Europa.
Secretamente, ele já se encontra a preparar a sua participação. Adquiriu ou está para adquirir, utensílios velocipédicos indispensáveis a tal provação. Já contabiliza muita quilometragem nas pernas e prepara várias aventuras até ao final do ano. Só restam dúvidas quanto ao ano em que tal vai acontecer e se, até lá, a prova se mantém, uma vez que o seu principal mentor e organizador, Mike Hall, foi assassinado por um enlatado no início do ano, durante a Indian Pacific Wheel Race, uma corrida semelhante à TCR mas que decorre naquele continente onde todos os animais parecem engendrados para arrancar pedaços ao ser humano. Na Austrália, portantos.
A edição de 2017 da TCR foi salva e colocada em andamento por admiradores e amigos próximos de Mike Hall, cuja morte abalou bastante o Velopata pois era dos poucos seres humanos com quem ele desejava travar conhecimento e, fundamentalmente, uma inspiração.
Como o ditado popular afirma que uma imagem vale mais que mil palavras, fiquem pois com uma seleção de fotos que o Velopata escolheu, de entre as muitas que podem consultar no facebook oficial da prova, que mostram a dureza mas também a magnificiência pela qual todos os 250 atletas selecionados passam aquando da Transcontinental Race.

















A edição deste ano conta com a participação de 2 tugas, tendo o Velopata tido o prazer de travar conhecimento internético com um deles, conseguindo manter o contacto com ele durante a sua longa provação.
Aquando do regresso dos moços à Tugalândia, o Velopata prepara já uma entrevista a ambos, para dar a conhecer à nação velopática, todos os altos e baixos que uma demanda desta natureza acarreta.
E em antes que venham questionar o Velopata com um “Ó Velopata mas porque raios te queres tu meter nisso?”; a grande questão é;
Porque não?
Abraços velocipédicos,
Velopata
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