O Velopata acorda. Sentado na mesa da cozinha, sorve lentamente o iogurte natural biológico condimentado com uma colherada de mel que escorre sobre a mistura de aveia e frutos secos. Observa os azulejos brancos da parede mas, na realidade, a sua mente viaja… Está lá, na França.
Cafézada na varanda, agora sem o acompanhamento da famigerada cigarrada.
Sentado no confortável sofá da sala, comando remoto na manápula, o Velopata sintoniza o canal 37 da sua tv que ainda não é smart.
Sinuca.
A querida e adorada Eurosport transmite um qualquer torneio de um desporto, que o Velopata reconhece ser praticado apenas em tascos mais evoluídos, onde “atletas” se armam de fininhos tacos de madeira para espetar cacetadas em bolas, de modo a colocá-las no interior de buracos sobre um pano verde. Fora de brincadeiras, quem é que quer ver sinuca na televisão? Onde está a transmissão do Tour? Terá ocorrido algum erro de pogramação? Terão finalmente os terroristas atacado a caravana de licra? Terão os marcianos invadido França?
Não.
É com enorme consternação que o Velopata constata o óbvio – aquelas três maravilhosas semanas de Julho que compõem o Tour chegaram ao fim.
Do interior da sua alcofa também o Velopatazinho solta o seu lamento, uma choradeira que lembra um alarme desengonçado.
“´Tadinho. Devem ser cólicas.” – lamenta a Srª Velopata.
“Que nada! Está é com´ó pai dele. É a ressaca que dá a abstinência do Tour.”
“Não sejas parvo. O bebé lá liga patavina a isso.”
“Ué. Uó. Ué.” – o Velopatazinho cessa o choro, respondendo à provocação da Srª Velopata.
Como este puto é esperto.

Dia 16 – Bate leve, levemente, como quem chama por ele certamente. O Velopata foi ver. Era a Sunweb. E o vento.
Como não existem duas sem três, ou três sem quatro, ou até mesmo quatro sem cinco, a ASO presenteou os fãs velocipédicos com um regresso à mais bela competição mundial e quiça do universo com uma nova etapa plana de 165 quilómetros.
Mas se o marasmo estava previsto na secretaria, no alcatrão a história foi bem diferente.
Com uma exibição de se lhe tirar o cycling cap, a velopata-friendly Sunweb distribuíu carochas e de que maneira; percebendo que Marcelo Kittado ficava para trás nas primeiras rampinhas do dia, os moços de negro e branco trataram-lhe da saúde capilar fazendo uso de toda a equipa mas principalmente, do feroz vento lateral que assolou toda a etapa. Michael Matthews conseguiu assim as bonificações pontuais dos sprints intermédios, arranjando sabe-se lá onde forças para vencer a etapa, aproximando-se perigosamente na classificação dos pontos do alemão mais bem penteado deste Tour.
Quem também se viu forçado a digerir uma monumental carocha foram El Dopalero e o irlandês da dentição destroçada, Daniel Martins. Apanhados pela bordure provocada pela Sunweb, lá os moços perderam mais uns segunditos na luta pela classificação geral, se é que alguma vez estiveram nessa luta. Surpresa mesmo foi o nanico colombiano Kingtana que acabou por se safar no meio de tanta refrega eólica e regressar ao Top 10 da classificação geral.
E claro, nunca é demais lembrar o Velopatazinho dos horrores que o vento pode provocar.
Dia 17 – O silêncio é de ouro.
O Velopata foi à sua habitual sessão de tortura mensal, na qual os pêlos de seu corpo são retirados violentamente com recurso a cera quente, o que é sempre agradável no fresquinho do Verão algarvio.
Finalizada a flagelação de arranque dos cílios velopáticos, o Velopata visitou o estabelecimento localizado na porta do lado, a Caffee & Cycles, onde poderia dar dois a três dedos de conversa com o sempre simpático proprietário de alcunha velopatóide desconhecida, Rui Silvestre, aproveitando para visualizar o final do que se esperava uma dura etapa de montanha, acompanhado de uma merecida mais-que-merecida min.
Como é hábito, o Rui dissertava sobre as espectaculares máquinas azul-bebé disponíveis para venda no seu tasco mas, principalmente, sobre o facto de todas as outras marcas de bicicletas presentes neste Tour, fornecerem as suas equipas com vários modelos dependentes do perfil da etapa; bicicletas para rolar, bicicletas para subir, bicicletas para obrar (no caso da Giant de Tom Dumoulin, o Holandês Cagador), no entanto, a Bianchi tem apenas uma e uma só bicicleta para toda a obra, a Oltre xr4. Um motivo de orgulho para o vendedor da mais antiga marca registada de bicicletas do universo, talvez até do mundo.
“Deve ser por isso que ainda não ganharam nada.” – pensou o Velopata para com as suas lindas, agora bem lisinhas e oleadas, pernas.
Mas como também já vem sendo hábito, pela boca morre o Velopata. Infelizmente neste caso nem foi necessário abrir a boca, bastou ao Velopata pensar.
Na mítica subida do Galibier, o Primo do Rogil voltou a mostrar porque razão é já considerado um dos duros do pelotão, algo que os algarvios já sabem bem – só os duros conseguem vencer a Volta ao Algarve, como este jovem esloveno de 28 anos o fez este ano de sua graça velocipédica de 2017. Atacando a 5 quilómetros do final da penúltima contagem de montanha do dia, o Primo do Rogil deixou tudo e todos para trás, lançando-se na primeira vitória das bicicletas azul-bebé deste Tour e logo com um ataque de longe. Chapeau!

Verdade seja escrita que, por momentos, até o próprio Primo do Rogil deve ter duvidado das suas capacidades – na última subida do dia para Serre Chavalier, dir-se-ia que os cavalos da geral lá atrás se sentiram inspirados com o nome da serra que subiam e bem o perseguiram. Froomster, Bardet e Uranus cobiçavam as bonificações do pódio e lutaram entre si, mas lá tiveram de se contentar com segundo (Uranus), e terceiro (Froomster).
Quem pareceu começar a sentir o Fantasma da Monumental Carocha pairar sobre si foi Fabinho, mostrando muito más pernas a subir e perdendo importantes segundos para a concorrência. Mal sabia ele o que o aguardava.
Bilhetes de ida foram também tirados por Kingtana, que acabou por perder o seu lugar no Top 10 e nunca mais lá foi visto, tendo o seu progenitor, qual pai ofendido que vai à escola discutir com o professor porque razão tem o seu filho más notas quando este não estuda um ass, criticado a Movistar por estar a exigir mundos e fundos do seu primogénito. Ao que a imprensa côr-de-rosa velocipédica apurou, parece que existiram alguns arrufos entre Kingtana e a Movistar, podendo o nanico colombiano estar de saída. Ao Velopata isso parece uma ideia de jerico das telecomunicações espanholas. O homem não deixa de ser um fora-de-série, simplesmente fazer Giro e Tour no mesmo ano e esperar resultados só está ao alcance daqueles que… Enfim, em tempos idos onde os testes de despistagem de substâncias ilícitas se faziam em provetas quadrangulares e copos de shot.
Mas o monumental bilhete de ida, e em primeira classe, foi tirado por Marcelo Kittado que, quando tudo apontava para a sua vitória na maillot vert dos pontos/regularidade, esbardalhou-se à grande e à francesa (literalmente), acabando por abandonar o que seria um recorde histórico no Tour. Até certa medida, ainda bem que assim foi, caso contrário teríamos novamente uma parada alemã nos Campos Elíseos e a história mostra que isso não acaba bem.

Destaque ainda para El Dopalero que bem se esforçou por mostrar que ainda está aí para as grandes voltas, mas os bifes de outrora parecem já não fornecer “aqueles” ganhos marginais.
Lição para o Velopatazinho só podia ser uma; “Não sejas como teu pai e aprende que, às vezes, mais vale estar calado.”
Dia 18 – O castigo vem a cavalo.
Com a décima oitava etapa os ciclistas tinham pela frente a última escalfa montanhosa deste Tour com 179,5 quilómetros de extensão e uma chegada no temível Col d´Izoard.
E o que dizer desta Sunweb que, com uma equipa de muitos jovens valores, bicicletas gigantes, modesto orçamento mas uma enorme vontade de querer, limpava a maillot a las bolinhes da montanha e uma quarta etapa, novamente pelas pernas do Uárren Braguilha?
Mas esta bela vitória de mais um talento avec que promete muitas alegrias na terra do chômpanhe e cruássantes, terminou ofuscada pela luta que decorreu entre os candidatos à geral e a já clássica intemporal porra-e-massa entre colegas de equipa; Froomster e Judas Landa.
Judas Landa atacou, tentanto assaltar o pódio de Bardet e Uranus e, quem sabe, algo mais? Na perseguição, quando se esperava ver resposta de Uranus e Bardet, eis a surpresa quando quem ataca é… Froomster. Sabe-se agora que todo o stock de Kompensan foi esgotado nas parafarmácias desta remota região francesa por vários indivíduos vestindo pólos negros.
Durante a descida que preparava o ataque final ao Izoard, Froomster colou novamente em Judas Landa com Bardet e Uranus conseguindo manter-se na roda. Assim, à geral não ocorreram alterações significativas, com excepção claro, da Mãe De Todas As Carochas que a elite decidiu forçar Fabinho a engolir.
Os tubarões velocipédicos sentiram sangue no asfalto quando Fabinho cedeu uma primeira vez, perdendo o contacto com o grupo da elite. Sentindo uma gigantesca oportunidade de mostrar a Fabinho porque razão existem princípios entre homens de perna depilada, não se devendo atacar à bruta o maillot jaune quando este fura, verdade seja escrita, aquilo assemelhava-se a tiro ao boneco Fabinho. Era carocha atrás de carocha que forçaram o moço a engolir; cada vez que recuperava a sua posição no elástico do grupo, alguém carregava lá na frente deixando-o com aquela bocarra meio AVC, meio trombose, que tanto aprendemos a adorar. Nem a suposta cirurgia nasal o salvou nesse dia. E assim lá se foi o sonho do Fabinho.

Dia 19 – Quem pedala sempre alcança.
Ainda não satisfeitos com as monumentais etapas entediantes, a ASO preparou para as vésperas do contre-la-montre individuel que tudo decidiria, uma estopada de 222 quilómetros planos e finalmente a equipa Sul-Africana da Dimension-Data festejou uma vitória, para além da expulsão de The Saganator, com um dos seus muitos atletas africanos, que neste caso se chama Edvaldo Bossa Haägen-Dazs e até é campeão norueguês.
Na disputa pela geral, os canhões foram armazenados para o último dia de competição a sério, não se produzindo diferenças.

Dia 20 – Um Tubarão amarelado.
Apesar da sua paixão… Desculpe caro leitor, obsessão será o termo correto… Apesar da sua obsessão por velocípedes, o Velopata tem pouca paciência para assistir a transmissões televisivas de contra-relógios.
Ainda para mais um contre-la-montre individuel onde todos adivinhavam o resultado final.
Engraçado foi mesmo ver enquanto Froomster, vestido de licra amarela, na véspera cuidadosamente recortada ao mais ínfimo detalhe de modo a salvaguardar os ganhos marginais aerodinâmicos, perseguia qual tubarão faminto, o magrela Bardet que fez das tripas, alma, coração e que mais orgãos consigam caber naquela franzinez toda, pernas. O pobre rapaz terminou a sua prestação salvando o seu terceiro lugar no pódio por 1 mísero segundo. Dá que pensar; se Judas Landa não tivesse sido mantido em cativeiro pela Sky e teríamos um pódio cheio de ganhos marginais e um Uranus metido lá no meio. Resta saber se Bardet já teve alta hospitalar ou se ainda se encontra a soro. Se é que o que eles metem lá nas tubagens dos ciclistas é soro…

Novamente as jerseys com bolhinhas da UK Post…. Sky, Team Sky, voltaram a dominar, premiando um Miguel Quiatecóusqui com um belo segundo lugar, depois de tanto ter trabalhado para proteger Froomster que assim consolidou a sua quarta vitória na Volta a França.
A vitória do dia coube à Bora-Hanscoiso que premiou Macieira Bodegar, nome mais fácil traduzido que escrito ou lido na sua língua natal polaca, com vitória no contra-relógio. Mesmo com a expulsão de The Saganator, a equipa dos exaustores culinários mal montados lá conseguiu levar dois canecos para casa.
Dia 21 – Onde é que o Velopata já viu isto?
Chegava-se assim ao final de três semanas de emoção velocipédica, culminando com mais uma vitória para a equipa das bicicletas azul-bebé, a Lotto-Jumbo, através dos gloriosos esforços de Dylan Grunhoquenãoévegano, fazendo história ao ser o primeiro holandês de impronunciável nome a vencer nos Campos Elíseos.
Fora isso, esta etapa foi o que tradicionalmente já é… Uma seca.
Um dado curioso, revelado dias depois do término do Tour; ao que tudo indica esta foi a segunda edição mais rápida da sua história e isso, querido leitor, aliado ao facto de termos um ciclista que vence 4 em 5 anos possíveis, dá cá uma nostalgia ao Velopata…
E ainda tentam convencer a malta que vivemos a era do “ciclismo limpo”.

Como nota final, alguns queridos leitores terão reparado que o Velopata omitiu a maillot blanc, referente à classificação do melhor jovem em prova. Este ano quem levou o caneco foi outro bife, o jovem Simon Yates da equipa Orica-Scott.
O que eles (ainda), não sabem é que esta será a primeira grande jersey que o Velopatazinho vencerá quando participar pela primeira vez no Tour, logo, não fará muito sentido fazer aqui publicidade à concorrência. Especialmente, quando à luz do ciclismo limpo, estes gajos pedalam até idades mais avançadas, quais El Bala Valverde e El Dopalero Contador.
Agora é altura de carregar baterias e Viva La Vuelta! Olé!
Abraços velocipédicos,
Velopata