O Velopata já a tinha visto tantas outras vezes enquanto passeava a Cadela Descontrolada. Sozinha e desprotegida, exposta aos elementos e aprisionada entre as paredes da sacada; ele nunca deixou de pensar em quem seriam os selvagens que ali habitavam e como conseguiam dormir de noite, sabendo estar aquela beldade a sofrer com o tórrido calor do Verão algarvio e a ocasional borrasca noturna.
E depois… Aconteceu isto.
Como habitual, o Velopata deixava o conforto do lar dirigindo-se para onde ele afincadamente labuta. Uma vez que o caixote do lixo encontrava-se repleto dos restos da janta da noite anterior e muito para desespero da Cadela Descontrolada, que adora um snackzinho de imundície a meio do dia sempre que o Casal Velopata não está em casa e se esquece de despejar o lixo onde se encontram os tais restos de paparoca, o Velopata saíu carregado com o saco de lixo e isso, caro leitor, é sempre uma visão sui generis. Não só o Velopata já é amplamente conhecido pela sua azelhice, agora imaginem um Velopata a carregar uma single-speed tamanho 56 e um enorme saco de lixo para o interior de um apertado elevador. Saco de lixo que, com certeza, não continha no seu interior carbono, dado o peso do “bicho”.
O Velopata descarregava o campeão dos pesos-pesados dos sacos de lixo no seu respetivo contentor quando ouviu uivos de dor, agonia e desespero atrás de si. Virando-se, foi com pouca ou nenhuma surpresa que o Velopata reconheceu a pobre donzela, tantas outras vezes abandonada na sacada, encostada à parede do prédio e a seu lado uma fêmea que chorava as passas do Algarve para o seu smartphone (ou seria um simples telemóvel?, o Velopata não conseguiu perceber). Ao que o Velopata conseguiu apurar, existia algo de errado com aquela donzela de quadro branco e a fêmea estava atrasada para o local onde deveria já estar a labutar. Nem todos podem ser como o Velopata, que é como o Gandalf e nunca se atrasa.
Aproximando-se do triste dueto, o Velopata reconheceu a fêmea. Era a famosa Fadista, que o Velopata conhece ser a respectiva do Mister, um antigo chefe do Velopata, num outro local onde em tempos o Velopata labutou.
O problema é que o Velopata detesta fado e as suas infelizes e miseráveis letras do estilo “Mas porque é que Deus me fez isto?”. O que tem a sua lógica, tendo em conta que o Velopata considera os Cabeça de Rádio (Radiohead, em bifês), a melhor banda contemporânea, sendo estes sobejamente conhecidos por serem um conjunto de músicos com temas muito felizes e alegres.
Outro aspecto do Velopata que muitos leitores também conhecerão é o facto de este ser um Real Asno no que à mecânica de bicicletas respeita; a última vez que deu por si a trocar uma câmara de ar furada, o Velopata levou umas boas horas (na realidade foi apenas 1 hora mas pareceu uma eternidade), e muita, mas mesmo muita, blasfémia proferida; quer para as mães dos fabricantes das câmaras de ar, quer para os antepassados dos fabricantes de rodas.
Ainda assim, vendo uma fêmea em apuros e seguindo o código de conduta das sua religião velominati, na qual se deve sempre ajudar um companheiro do pedal, o Velopata aproximou-se da Fadista levando em mente duas intenções; tentar auxiliar a moça de qualquer modo possível e aproveitar para pregar a religião velominati, explicando que uma bicicleta não pode nem deve, ser abandonada numa sacada, uma vez que o governo português ainda não criou uma Associação Nacional de Protecção e Apoio à Bicicleta Vítima de Violência Doméstica (ANPABVVD), caso contrário, o Velopata já teria lançado uma denúncia anónima.
“Bom dia! Precisa de ajuda?”
“Muito obrigado, já não sei o que fazer e estou atrasada para o trabalho!” – a Fadista cessou o choro, limpando baba e ranho, esperançosa por ver uma mão viril aproximar-se para resolver o problema com a sua bicicleta.
“Então qual é o problema?”
“É a corrente, está entalada entre a última daquelas coisas dentadas e a bike.”
“Coisa dentada? Bike?”
“Sim, está ali tudo entalado!” – a Fadista continou, não percebendo o conteúdo da sua horripilante fala anterior.
“Vamos lá a ver uma coisa; primeiro a coisa dentada chama-se cassete, sendo cada uma das suas rodas dentadas um carreto. Segundo, isto não é uma bike, é uma bicicleta. As bikes são meios de transporte primitivos que ainda necessitam de um horrível e ultrapassado motor de combustão para a sua propulsão.” – explicou o Velopata, tentando manter a calma.
“Mas a minha bicicleta tem motor, é uma e-bike!”
O Velopata saltou para trás, afastando-se daquela coisa medonha.
Ele já tinha ouvisto falar destas bicicletas com motor, mas a verdade é que esta nada tinha a ver com as bicicletas do World Tour.
“O que foi?” – questionou a Fadista, perplexa com o salto que o Velopata deu.
“Desculpa mas… Ele tem medo que a tua bicicleta o morda ou algo assim.”
“A minha bike… Desculpa, a minha bicicleta não morde. Uma coisa… Tu não és o Velopata? Acho que o meu marido já me falou de ti, não és aquele maluco das bicicletas?”
“Sim e não.”
“Como assim?”
“Sim, ele é o Velopata e não, ele gosta de bicicletas a um nível que ultrapassa o maluco.”
“Ah… Ok… Mas podes-me ajudar ou não? É que já estou tão atrasada para o trabalho…”
O Velopata aproximou-se novamente da e-bikecoiso. Porque razão uma fêmea saudável, que aparentava trinta e poucas primaveras, escolheria uma daquelas coisas com motor para o seu commute era um mistério que ultrapassava largamente a mente velopática. Mas a moça precisava de ajuda e os pais velopáticos ensinaram-no a ser um cavalheiro.
Pegando na máquina para a colocar mais a jeito para uma inspeção pormenorizada, o Velopata ficou chocado com o absurdo peso do “bicho”; não admirava portantos que fosse necessário um motor e verdade seja escrita, aquela e-bikecoiso aparentava pesar mais que toda a coleção de bicicletas velopática.
Após inspeção, o Velopata concluíu que por alguma misteriosa e desconhecida razão, a corrente saltou da cassete, tendo-se alojado entre o mais pesado dos carretos e a escora inferior direita do quadro. Seria necessária toda a força dos braçinhos velopáticos meio-somali-meio-etíopes para desencarcerar a corrente.
Uma, duas, três vezes o Velopata aplicou toda a sua força sobre a famigerada corrente.
A desgraçada nem se mexia.
“Se calhar foi por a ter deixado cair ontem à noite, não?”
“Deixou-a cair?” – questionou um atónito Velopata.
“Sim, foi um acidente.”
A prova cabal em como esta e-bikecoiso sofria violência doméstica.
Engraçado que todos os que praticam maus tratos dizem ter sido sempre “um acidente”.
“Bem… Pode realmente ter sido isso, sim. Olha, fazemos assim, pode ser que com um bocadinho de lubificante ele consiga soltar a corrente. Por isso aguarda aqui um pouco que ele vai a casa buscar o seu óleo de corrente maravilha.”
“Ok, eu espero.”
O Velopata regressou a casa, sendo recebido pela Cadela Descontrolada de olhar triste – hoje não haveriam snacks de lixo. Pegando na garrafinha de óleo maravilha e na ferramenta multi-funções, que bem mais de metade das chaves o Velopata não faz a mínima ideia para o que servirão ou onde encaixam, regressou para junto da Fadista e da sua e-donzela em apuros.
Corrente lubrificada e toca a dar trabalho aos velopáticos braçinhos etíopes.
E novamente a desgraçada da corrente nem se moveu.
“Que raios! Ele nunca viu isto acontecer. Começa-lhe a parecer que a roda tem de ser removida para se poder soltar a corrente.”
“Não consegues fazer isso?” – questionou a Fadista.
O Velopata inspecionou a roda traseira da e-bikecoiso. Não se viam apertos rápidos – aquele mecanismo era desconhecido para o Velopata, nem no pelotão World Tour as rodas das bicicletas motorizadas se prendiam assim.
“Uhm… Não lhe parece que consiga tirar esta roda. O melhor a fazer é mesmo ires até uma loja da especialidade e pedir a um mecânico. Eles, com certeza, safam isto num instante.”
“Vou fazer isso, sim. Parece que hoje vou ter de a deixar em casa e…”
“Sacada.” – o Velopata educadamente interrompeu o raciocínio da Fadista.
“Desculpa?”
“Dissete que a ias deixar em casa mas na realidade ele sabe que a vais deixar sozinha na sacada do apartamento. O que é só horrível. E se fosse contigo? Deixarem-te assim abandonada ao sol, frio, chuva e humidade… Não achas que devias mostrar mais respeito para com a tua montada?”
“Bem, nunca tinha pensado nisso.”
“Claro que não tinhas pensado nisso. Por isso mesmo é que ela agora se está a vingar.”
“Achas mesmo?”
“Claro. As bicicletas também têm sentimentos. Mesmo que sejam e-bikescoiso.”
“Realmente… A partir de hoje prometo que terei mais atenção para com ela.”
“Devias, sim.”
“De qualquer maneira, obrigado por tudo. Parece que hoje vou ter de ir de carro.”
Regressando a casa, para guardar a garrafinha de óleo maravilha e a ferramenta multi-funções, o Velopata foi saudado pela Cadela Descontrolada com uma efusividade tal que dir-se-ia não ver o Velopata há mais de 1 mês. Com certeza já havia esquecido que hoje não haveriam snacks com os restos da janta.
De regresso à estrada, o Velopata aguardava a passagem de um enlatado quando eis que… Lá vinha a Fadista, toda contente e sorridente, pedalando na sua e-bikecoiso estrada fora.
“Então, que aconteceu? Conseguiste arranjá-la?” – questionou um Velopata incrédulo.
“Não. Quando fui a casa deixá-la, peguei num martelo e ia resolver a questão, nem que fosse a mal. Quando cheguei junto dela… Estava tudo bem!”
“Estás a ver?”
“O quê?”
“Ela ficou tão aflita e com medo do martelo que se deixou logo de manhas e arranjou-se!”
“Achas mesmo?”
“Já disse uma vez e repito… As bicicletas também têm sentimentos.”
Abraços velocipédicos,
Velopata