Operação Stop

18:05 da noite.

Como habitual o Velopata preparou-se para o regresso a casa após mais um dia de labuta, lá onde afincadamente labuta. Capacete, luvas porque faz frio, luzes acesas e aquela fitinha fluorescente na perna a prender as calças. Fez-se à estrada na sua Brownie e nem 1 quilómetro passou para que um agente da Guarda Nacional Republicana, desse indicação ao Velopata para que cessasse a pedalada, encostando na berma e aguardando mais instruções.

É verdade caros leitores, o Velopata seguia na sua Bicicleta a pedal quando foi mandado parar para uma operação stop.

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O Velopata todo sorridente no dia em que adquiriu a sua Brownie. Pobre coitada, depois dos acontecimentos que se seguem o leitor verá que dificilmente voltará a ser a mesma Bicicleta.

O GNR bateu continência ao Velopata que a retribuíu. Claro que o Agente da Autoridade não achou piada e fazendo cara de poucos ou nenhuns amigos arrancou com o clássico chavão;

GNR: Boa noite. Os seus documentos por favor.

Velopata: Boa noite senhor agente. Desculpe mas… Documentos?

GNR: Sim necessito do seu cartão de cidadão, carta de condução, livrete, registo de propriedade, imposto de circulação, papéis do seguro e inspeção.

VP: Senhor guarda desculpe mas eu não tenho nada disso.

GNR: Como assim não tem nada disso?

VP: Não tenho e nem sabia ser necessário para quem se desloca de bicicleta.

GNR: Estou a ver que não tem visto as notícias.

VP: Nem por isso, não.

GNR: Com certeza não saberá também que o facto de o cidadão desconhecer uma lei não o livra de coimas.

VP: Ah sim, conheço gente lá.

GNR: Desculpe?

VP: Você falou em Coina, tinha uns colegas de universidade que eram de lá.

GNR: Eu disse coimas! Você não se livra de uma coima só porque desconhece uma lei. Então você não sabe que a ANSR em parceria com o governo e de modo a fomentar o uso da bicicleta e o aumento da segurança rodoviária tornou obrigatório que todos os veículos que circulam nas estradas portuguesas devem possuir a mesma documentação? Imagine bem que até as carroças dos ciganos…

VP: Parece-me justo sim mas olhe que o único documento que trago é o cartão de cidadão.

O Velopata estendeu o cartão de cidadão minuciosamente inspeccionado pelo agente da autoridade.

GNR: Bem, com o seu cartão de cidadão está tudo bem. O único problema é na foto onde você aparece sem barba mas esta eu deixo passar porque a barba fica-lhe realmente muito bem.

VP: Obrigado.

GNR: Já quanto aos restantes documentos penso que podemos chegar a um compromisso. Fazemos o seguinte; eu vou inspeccionar a sua bicicleta para verificar se tem tudo legal e deixo-o ir mas amanhã vá à Câmara Municipal, ao Centro de Inspeções Velocipédicas e a uma seguradora e trate das licenças e papeladas que necessita. Tem vinte e quatro horas para as apresentar na esquadra e evitar assim a coima.

VP: Muito obrigado senhor agente. Agradeço-lhe muito até porque não me dava jeito nenhum ir para Coina.

GNR: Hã?… Bom, não tem de quê. Agora vá, vamos lá inspeccionar a sua bicicleta.

Os minutos que se seguiram foram eliminados da mente do Velopata, vítima do síndroma de stress pós-traumático; forçado a assistir enquanto um estranho mexia e remexia a sua Brownie. Sentindo-se quase violado o Velopata assistiu enquanto o semblante do GNR se tornava gradualmente mais pesado e a inspeção evoluía.

GNR: Estou a ver que temos aqui um valente problema.

VP: Desculpe senhor guarda? Problema?

GNR: Sim, isto tem aqui tanta coisa errada que nem sei por onde começar o auto.

Chamar “isto” à Brownie soou a provocação gratuita mas o Velopata sabe que nestas situações a melhor opção é fazer como os restantes canídeos da matilha e mostrar subordinação ao macho-alfa, ou seja, deitar-se de barriga para cima e soltar umas pinguinhas de urina sobre o ventre. Não literalmente, claro.

GNR: Para começar, onde está a sua matrícula?

VP: Senhor agente, julgava que tínhamos evoluído e desde o final dos anos 80 já não era necessário.

GNR: Pois mas olhe que tendo em conta o nível de infrações e mortes que os ciclistas provocam nas estradas o governo, após consulta com a ANSR, dedidiu introduzir novamente a matrícula. Bem, é como lhe disse, quando for registar este seu veículo ser-lhe-á atribuída uma matrícula.

VP: Assim farei. Já agora, sabe se as fazem em carbono?

GNR: Claro que não. São todas produzidas com o apoio da NASA e são em titânio para que não sejam danificadas quando vocês ciclistas colidem com os automóveis. Assim já não podem fugir impunes.

VP: Tem toda a razão. Mas em titânio devem ser muito caras não?

GNR: Não lhe consigo precisar valores mas penso que a licença e matrícula devem ficar por volta dos 800 euros.

VP: 800 euros?

GNR: Não se esqueça que esta medida foi estudada pela ANSR e considerada muito importante pelo governo na promoção do aumento da segurança rodoviária dos portugueses e segue ao encontro das novas leis europeias que fomentam o uso da bicicleta como meio de transporte.

VP: O que seria de nós sem o governo e especialmente a ANSR…

GNR: Nem mais, já uma outra questão, porque razão a sua bicicleta não tem mudanças? Tem algum jeito pedalar assim?

VP: Senhor agente, a Brownie  é uma single speed.

GNR: Pois mas nem o governo nem a ANSR querem que você ande para aí a cansar-se à toa com uma bicicleta sem mudanças. Trate lá de ir montar aí umas mudançazinhas para aumentar a sua comodidade. E já agora aproveite e mande colocar uns pneus mais largos que esses que você aí tem de 23″… E que não sejam seliques. Isso só faz é mal à coluna e posso-lhe dizer que estão a ser feitos estudos e será apresentada à Assembleia da Reública uma proposta no sentido de proibir o pneu 23″ e mesmo o 25″. Só se poderão usar pneus mais largos, nomeadamente 40″.

VP: Nunca tinha pensado sob esse prisma mas realmente tem razão senhor guarda.

GNR: Depois as suas rodas. Não tem nenhum dos quatro refletores côr de laranja obrigatórios; dois na roda de trás e dois na roda da frente.

VP: Mais uma vez tem razão senhor guarda. Sabe, quando adquiri a Brownie ela vinha equipada com esses refletores mas como não eram em carbono removi-os. Mas não se preocupe que irei prontamente encomendá-los.

GNR: Muito bem. E os seus pedais?

VP: O que têm os pedais?

GNR: É mais o que não têm. Onde estão os refletores côr de laranja à frente e atrás de cada pedal?

VP: Senhor guarda não lhe poderia dar mais razão. A culpa é da Shimano que não faz pedais como a lei portuguesa obriga. Irei, ainda hoje, enviar um mail ao importador reclamando desta questão.

GNR: Faz muito bem pois o que se quer é cidadãos participantes e construtivos. Outra questão, já reparou nos seus apertos rápidos?

O Velopata observou os apertos rápidos. Tudo bem, a Brownie é uma maravilha da antiguidade, do final dos anos 70, tendo sido recuperada, mas certos pormenores como os apertos rápidos (leitor civil, são estes apertos que prendem a roda ao quadro da bicicleta), já viram melhores dias no que respeita ao aspecto.

VP: O que têm os apertos?

GNR: O governo não quer que você os prenda assim. É perigoso pois em caso de colisão com um automóvel pode danificar bastante a pintura deste. O mesmo se passa com o seu guiador, esses bullhorn foram proibidos pois em caso de acidente podem partir o vidro frontal do automóvel e vazar uma vista ao condutor. Ou até mesmo empalar um pobre peão.

VP: Epá senhor guarda, tem razão. Amanhã mesmo vou falar com o meu mecânico e tratar de mudar o guiador bem como montar uns novos apertos do modo o mais seguro possível.

GNR: Aproveite e peça também que instale uns refletores como manda a lei, um branco na frente da bicicleta e um vermelho atrás.

VP: Com certeza. Sabe se os fabricam em carbono?

GNR: Não… Mas calma… Eu ainda não lhe falei do quadro.

VP: Uai senhor guarda, o que tem o quadro?

GNR: Este quadro é aço, certo? O governo proibiu também os quadros em qualquer outro material que não titânio. Em testes, a ANSR e o governo concluíram que todos os outros materiais utilizados na produção de quadros de bicicleta são muito castigadores para o corpo e lá está, como o governo está preocupado com o seu bem-estar e segurança, a partir de agora só se autorizam bicicletas com quadros de titânio. E nem vou falar na geometria. Isto das geometrias de quadros para corridas também está a ser alvo de estudos, em breve deverão proibir tudo o que não seja pasteleiras pois onde é que já se viu andar aí a pedalar todo dobrado? O governo quer que você pedale confortável e em segurança.

VP: Faz sentido sim.

GNR: Já agora, os seus piscas se faz favor.

VP: Como? Piscas?

GNR: Sim, vai-me dizer que não tem piscas?

VP: Bem, assim de repente acho que vou.

GNR: Você não sabe fazer piscas? É só levantar os braços homem! Vá, eu explico, levante o braço direito para indicar que vai mudar de direção à direita.

O Velopata seguiu as instruções do agente da autoridade à letra.

GNR: Agora à esquerda… Pois era o que me parecia.

VP: Então?

GNR: Você tem uma ligeira diferença no ângulo de inclinação do braço em relação ao sovaco no seu lado direito. Trate de ir a um osteopata para poder melhorar a sua maneira de fazer piscas e aumentar a sua segurança.

VP: Assim farei.

GNR: Outra infração grave na sua bicicleta é que  você só tem 1 suporte de bidon. Trate de colocar dois se faz favor que o governo tem estatísticas que mostram que a desidratação é um problema muito grave actualmente. Deverá sempre carregar 2 bidons cheios consigo.

VP: Ó senhor guarda esta noite acenderei uma vela de tofu para agradecer aos deuses o facto de existir alguém que se preocupa tanto com a nossa segurança.

GNR: Nem mais. E por pouco, com tanta prevaricação da sua bicicleta já me esquecia; onde estão o seu triângulo de sinalização e colete refletor, não vá se dar o caso de ter uma avaria na estrada, o extintor e a bolsa com as ferramentas obrigatórias para mudar uma câmara de ar ou um pneu?

VP: Senhor guarda nem sei que lhe diga. Só não percebi muito bem, extintor?

GNR: Não sabe para que serve um extintor?

VP: Sei sim, só não percebo porque terei de andar carregado com um.

GNR: Imagina que você vai a 90 km/h na sua bicicleta e embate contra um pobre automóvel a 30 km/h porque, como de costume, vocês ciclistas não respeitam sinais de stop e prioridades. Não acha que as partes metálicas da sua bicicleta ao roçarem a frágil carroçaria do carro podem provocar faíscas e consequentemente um incêndio?

VP: Tem toda a razão senhor agente. Amanhã, logo pela manhã, irei à loja de bicicletas saber se têm lá extintores em carbono.

GNR: Por falar na velocidade a que vocês ciclistas pedalam nas cidades, que travões são esses que você tem aí?

VP: São bonitos não são? Estes Modolo Corsa vintage são um mimo que o mecânico teve a amabilidade de montar na Brownie.

GNR: Pois podem ser muito bonitos mas não travam nada. Aviso-o desde já a amanhã tem de montar uns travões de disco na sua bicicleta antes de ir á inspeção.

VP: Senhor agente assim farei. Mas olhe que pasteleiras em titânio com travões de disco devem ser uma bonita visão.

Antes que a inspeção sodomizante terminasse o ensurdecedor som de batidas technokizombáticas e a aceleração de um Fiat 125, todo quitado com néons, vidros fumados, ailerons e entradas de ar no capôt, entrou em cena, passando a mais de 130 quilómetros por hora pelo Velopata e o GNR que boquiabertos assistiram enquanto este ultrapassou um outro enlatado pela direita, para isso pisando um traço contínuo e acelerando ainda mais para passar o sinal da zona de velocidade controlada de 50 quilómetros por hora que já há muito tinha passado a vermelho ou até mesmo encarnado.

GNR: Onde íamos nós? Ah sim, ia agora tratar de preencher os papéis do seu auto. Olhe que isto não está fácil, a única coisa correta que você tem na bicicleta são as luzes.

VP: Como? Mas então o senhor agente não vai fazer nada ao enlatado?

GNR: A quem?

VP: Ao ca… Car… Aquele senhor que passou todo acelerado ainda agora. Não o vai perseguir e autuar? Ele só desrespeitou os limites de velocidade, ultrapassou pela direita e por cima de um traço contínuo. E ainda ignorou o sinal vermelho.

GNR: Olha-me esta agora… Mas quem é que é a autoridade aqui? Até porque persegui-lo não me dá jeito nenhum, já tinha combinado ir até ao tasco ver a repetição na RTP História da final da Taça de Portugal de futebol de 1928, o grande clássico Xabregas de Baixo contra o Barreirense.

VP: Senhor agente eu posso esperar. Parece-me que o que ele fez foi bem mais grave que as minhas infrações.

GNR: Então mas o que é que você esperava do condutor? É normal que ele cometa tantas infrações. Você já viu que o pobre coitado é obrigado a deslocar-se de carro num sistema de mobilidade urbano que não foi pensado para ele, como é que você quer que ele respeite o código? Para não falar da qualidade das estradas que como todos nós sabemos em Portugal é uma lástima.

VP: Olhe que não é isso que as últimas estatísticas da União Europeia referem. Tanto quanto sei Portugal está em quarto lugar na qualidade das estradas.

GNR: Mas você já viu bem as estradas portuguesas? Estão cheias de curvas, traços contínuos, semáforos, rotundas, limites de velocidade e pior – estão cheias de entradas e saídas para outras estradas. Isto é uma selva e um perigo.

VP: Pois senhor agente porque no estrangeiro as estradas não são assim.

GNR: Claro que não! Ainda bem que temos a ANSR que se preocupa com o bem estar de todos os utilizadores da estrada.

VP: Não me posso esquecer de acender uma velinha de seitan pela ANSR também.

GNR: Faça isso sim pois é graças aos estudos da ANSR e ao trabalho do governo que a sua segurança é salvaguardada. Agora é necessário é que você cumpra o código e trate de colocar a sua bicicleta nos conformes com a lei senão um dia destes ainda mata alguém.

VP: Assim farei senhor agente.

Foi assim que o Velopata ficou a saber que foi apresentado a discussão pública o Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária (PENSE), promovido pelo Ministério da Administração Interna (MAI), de acordo com as propostas da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), cujo objectivo é tornar a segurança rodoviária uma prioridade para todos os portugueses.

Ao Velopata parece é que estão a tornar a segurança rodoviária uma piada para todos os portugueses.

Dúvidas caro leitor? Atentem às palavras do Comandante coiso-Supremo da GNR quando questionado para uma reportagem televisa sobre os 5 atropelamentos de enlatados a peões que ocorrem TODAS AS SEMANAS em Portugal;

“Os peões devem usar roupas de tonalidades mais claras.”.

Foi assim que o Velopata finalmente percebeu porque razão morrem tantos góticos e metaleiros atropelados.

E ainda bem que a Team Sky Pro Cycling não é portuguesa. Caso contrário Froomsters, Wiggins e companhia já não estariam entre nós. Onde já se viu, ciclistas todos equipados de negro… Um perigo para a população.

 

PS: O Velopata não considera nenhum Agente da GNR tão ou mais grunho como o que aqui foi descrito, muito pelo contrário. Ainda recentemente, enquanto aguardava a passagem da Volta ao Algarve na Meta Volante do Chelote esteve à conversa com dois agentes da autoridade que se revelaram uma simpatia e partilham muitas das opiniões do Velopata quanto á segurança rodoviária. O GNR deste texto não foi mais que um exercício de escrita parva, já tão habitual neste vosso amigo.

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

6 comentários sobre “Operação Stop

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