Muda-Fraldas

“Devias pegar nela e levá-la a passear pelas estradas onde normalmente pedalas.”.

Foi com esta recomendação de asno que um casal amigo sugeriu um passeio que permitisse à Srª Velopata conhecer as estradas e vilarejos onde o Velopata pode ser encontrado no seu habitat natural. Não satisfeitos com a brilhante ideia, o casal agora-já-não-tão-amigo insistia;

“Por questões de segurança… E se alguém te quiser fazer mal?”.

“Se alguém me quiser fazer mal peço para esperarem que vou telefonar à Srª Velopata e três, quatro ou cinco horas depois, quando ela me encontrar, vai-me salvar da porrada?”.

“E se te acontecer alguma coisa? Se caíres, se te aleijares a sério?”.

“Existe um aleijar a brincar? Se o acontecimento-cujo-nome-não-se-diz ocorrer tenho sérias dúvidas que a Srª Velopata sirva de alguma ajuda. Para além do tempo que deveria demorar a encontrar-me, ela é formada em Psicologia e não em Medicina.”.

“E se tiveres algum problema na bicicleta?”.

“A Srª Velopata nem as pilhas do comando da televisão sabe mudar.”.

Mais galhardetes foram trocados mas a verdade é que dias depois lá ia o casal Velopata enlatado serra fora. Objectivo; reconhecimento das estradas que o Velopata habitualmente percorre.

“Esta é a primeira subida mais a sério que se apanha para o Barranco do Velho.”.

“Aqui engana. É daqueles falsos planos que não parece mas na realidade vais a subir.”.

“Ui, e quando o vento bate nesta subida? Como não há vegetação pedala-se aqui exposto.”.

“Queres?” – pela primeira vez a Srª Velopata mudava a atenção da serpenteante estrada para questionar um Velopata entusiasmado com as estradas muitas vezes percorridas ao comando da Estrela Vermelha.

“Se quero o quê?”.

“Que eu pare o carro e te deixe aqui exposto se não te calas com as bicicletas.” – tiro de aviso para o ar.

“Então mas a ideia não era conheceres as estradas por onde pedalo?”.

“Sim. Mas a estrada aos ésses e o teu matraquear estão a deixar-me mal disposta.”.

“É a cena das hormoinas?”.

“Tu e as hormonas… Além de que não preciso que faças o reconhecimento da estrada. Eu estou a conduzir. Sei ver.” – desta vez tiro de aviso rente às pernas. O Velopata estava notificado, à próxima arriscava o regresso a casa, penantes style.

“Muito bem, a empregar palavras como reconhecimento.” – o Velopata gosta de arriscar.

“Não sejas parvo. Detesto estas estradas. Olha para isto, é só curvas e contracurvas!”.

“Nós fazemos esta parte a abrir, aí a uns 50 ou 60 à hora.”.

“Que bom que é ouvir isso. Não tenhas juízo e ganhes mais responsabilidade…”.

“Já sei. É a cena do Velopatazinho.”.

“Mas que mania essa agora.”.

“Eu sei, pode ser uma Velopatazinha.”.

“Santa paciência… Sabes que há mais na vida que só bicicletas?!”.

“Há sim mas nunca te esqueças do lema do Velopata.”.

“Que tal é essa agora do lema do Velopata?”.

“Sexo, drogas, rock n´roll e bicicletas. Não necessariamente nesta ordem”.

A Srª Velopata lançou farpas venenosas com o olhar na direção do Velopata que optou por permanecer em silêncio e não piorar ainda mais a situação no seu lado da trincheira. Se o leitor não soubesse até seria capaz de dizer que o Velopata faz de propósito.

Alguns quilómetros depois, que na realidade pareceram tortuosas horas para um Velopata enlatado, surgiam os primeiros caminhos de terra batida que despontam da estrada alcatroada percorrida pela lata do casal para desaparecerem no emaranhado de árvores da Serra do Caldeirão..

Sem pensar duas vezes o Velopata suspirou em alta voz;

“Deve ser fixe ter uma BTT para um gajo se poder meter por estes trilhos fora.”.

“Essa conversa da bêtêtê outra vez?” – a Srª Velopata pousou a mão sobre a pistola ainda fumegante na sua cintura.

“Um Velopata não pode sonhar?”.

“O Velopata tem é de estar quieto e juntar dinheiro porque vai ter um filho!” – esta dispensa metáforas, foi um certeiro headshot.

“Ah… Com que então um filho? Então já não é uma Velopatazinha?” – Velopata sempre na corda bamba.

“Não mudes de assunto e fujas com rabo à seringa. Queres ser o único ciclista do mundo a fugir de uma seringa?” – os três últimos tiros de raiva nas costas de um Velopata já cadáver no chão. “Às vezes parece mesmo que não tens noção nenhuma do que vem aí.”.

“Até parece. Só disse que deve ser fixe fazer estes trilhos em BTT.”.

“É que eu já sei como é que tu és. Ainda há pouco em casa já estavas com a conversa dos pneus de cinquenta e tal euros cada um. Isso vai-se acabar!”.

“Uai, queres que vá pedalar com pneus roskoff? Depois tenho mais furos e ainda vou gastar mais dinheiro porque se vão gastar mais rápido.”.

“O que tu vais é não-pedalar!”.

Aquilo já começava mesmo a soar à cena das hormoinas em modo full throttle descompensada. Aliando a serpenteante estrada à má disposição o Velopata sabia que a quezília podia aquecer. Como ciclista prevenido vale por dois, também sabia que a torta de alfarroba do Restaurante da Tia Bia, no Barranco do Velho, até punhada entre Católicos e Protestantes apazigua.

“Não temos, tem dias que não fazemos torta de alfarroba. Mas temos de batata-doce.” – disse uma das simpáticas moças atrás do balcão.

Merda. Tem dias que Altas Eminências Velocipédicas se esquecem do Velopata.

Não era a mesma coisa mas a torta de batata-doce lá teria de servir.

O sol em amarelados tons reluzindo nas folhas das árvores onde passaritos aqui e ali chilreavam nos seus afazeres de final de tarde e a torta de batata-doce surtiram efeito sobre a Srª Velopata que regressou a uma calmia que permitia um regresso à carga dissimulado, algo que o Velopata já aprendeu a dominar ao longo dos anos;

“Tens a certeza que temos de comprar assim tanta coisa para o Velopatazinho ou zinha?”.

“O que é que tu achas?”.

“Não sei. Realmente nem pensei bem nisso mas tenho ideia de já te ter ouvido a falar com a malta e que nos vão dar montes de coisas.”.

“Sim, mas não te vão dar tudo.”.

“Então?”.

“Então, tudo bem?”.

Este é um chavão clássico e recorrente na vida do casal Velopata. A Srª Velopata completou a última garfada na sua torta de batata-doce e recostou-se na cadeira da esplanada enquanto a piada moía no cérebro do Velopata. Instantes depois continou;

“Não te vão dar tudo. Precisamos de um combinado carrinho-ovinho-alcofazinha.”.

“É giro isto.”.

“O quê?”.

“Acaba tudo em inho ou inha.”.

“Estúpido.”.

“E que raios é isso do ca… Car…”.

“Carrinho?”.

“Isso. E alcofas e ovos?”.

“Precisamos de um carrinho que tenha lá o ovinho para deitar o bebé e a alcofa para o transportar.”.

“Isso é muita modernice. No meu tempo andávamos a pé.”.

“Queres que o teu filho recém-nascido ande a pé?”.

“No meu tempo o meu pai costumava dizer que não tínhamos quereres.”.

“Estúpido. Brinca, brinca… Quando vires os preços dos carrinhos combinados vais ver quem é que se vai rir quando quiseres comprar os tais pneus só porque são em carbono…”.

Esta deixa merecia silêncio do Velopata, o sempre baixo golpe finançeiro. Aproveitando a deixa o Velopata foi pagar a conta e o casal regressou à estrada;

“Vamos voltar pelo mesmo caminho?” – a Srª Velopata perguntou já de nariz torcido. Esta o Velopata sabia ser daquelas perguntas com rasteira que rapidamente poderia evoluír para entrada a pés juntos.

“Podemos ir pela Eira da Cevada que não é tão agressivo.” – respondeu um Velopata esperançoso.

Esperançoso do quê, perguntarão os leitores, pois a verdade é que logo às primeiras curvas dessa bela descida do Barranco do Velho para a Eira da Cevada, os protestos da Srª Velopata recomeçaram;

“Muito melhor esta estrada não há dúvida!” – o sarcasmo também é forte na Srª Velopata, fruto de muitos anos a aturar o seu respectivo.

“Então mas o que querias? Isto são estradas na serra, é só curva e contracurva em sobe e desce, o famoso parte-pernas algarvio!”.

“Eu logo te digo o que é que te vai partir as pernas!”.

Mais uma vez a especialista em pontos finais parágrafos Srª Velopata mostrava os seus dotes. Já o Velopata que tem sempre resposta na ponta da língua foi apanhado em falso mas acabou salvo por um quarteto de malta do BTT que se assomou à estrada, proveninente de um dos já referidos caminhos de terra batida que pululam na serra.

“E esta?… Era mesmo só o que faltava…”.

“O que é que foi agora?”.

“Tínhamos que apanhar um grupo dos teus amigos a ocupar a estrada toda para me fazer ir aqui a falecer lentamente atrás deles.”.

“Eu sei que o Velopata é amigo de todos os ciclistas mas estes não conheço.”.

“Mas devias. Assim eu buzinava e tu pedias para saírem da frente.”.

“Então mas não podes ultrapassar?”.

“Contigo dentro do carro não porque depois já sei como é que é. Cuidado com isto, cuidado com aquilo, cuidado com a distância de segurança…”.

“Também não percebo qual é a tua pressa. Devias aproveitar a paisagem.”.

“Queres conduzir tu e eu aprecio a paisagem?”.

“Cruzes canhoto, Santo Joaquim Agostinho me livre! Já viste o que seria se alguém visse o Velopata a conduzir uma lata? Lá se ia a reputação…”.

“Não tens emenda mesmo…”.

Uma pequena aberta surgiu e com todo o cuidado do universo a Srª Velopata ultrapassou o quarteto BTTista em segurança e sob o olhar aprovador do Velopata. Seguiram-se mais umas horas (na realidade foram aí uns cinco minutos), enlatados até que finalmente a estrada endireitou, apresentando-se com menos curvas e contracurvas. Como o Velopata não aprende decidiu tentar uma terceira investida;

“Mas diz lá, o que precisamos de comprar?”.

“Outra vez essa conversa?”.

“Se quiseres podemos sempre falar sobre a metereologia mas tendo em conta que somos um casal…”.

Foi com um olhar reprovador que a Srª Velopata respondeu;

“Estúpido. Olha, precisamos de um muda-fraldas por exemplo.”.

“Um quê?”.

“Que parte não percebeste? Um muda-fraldas.”.

“Uai, que é isso? É tipo uma máquina onde se mete o puto lá dentro, carrega-se num botão e ele sai de lá todo lavadinho, cheiroso e de fralda mudada?”.

“Estás a gozar não estás?”.

“Juro pela saúde da Estrela Vermelha que não sei que raios é isso do muda-fraldas.”.

“É parecido a uma cómoda onde se pode deitar o bébé e mudar a fralda sem teres de andar todo dobrado.”.

“Isso soa-me a dinheiro mal gasto. Quando o Velopata era cria não havia cá nada dessas modernices. As fraldas mudavam-se no sofá, na cama…”.

“Ah é? Então olha, fazemos assim; tu tratas de lhe mudar as fraldas mas depois não te venhas queixar de dores nas costas.”.

“Vá, não sejas intransigente. Eu não sei o que é um muda-fraldas mas tu também não sabes o que é um avanço ou um desviador pois não?” – isto já não era arriscar, era o Velopata a caminhar à beira do penhasco a pedir para ser empurrado – “Isso dos muda-fraldas é muito caro?”.

“É óbvio que depende. Há mais baratos e mais caros.”.

“Bem, se temos mesmo de comprar um muda-fraldas então só há mesmo uma opção.”.

“Que opção é essa agora? Há cinco minutos atrás nem sabias o que era um muda-fraldas e agora já opinas?”.

“Claro! Independentemente do que seja; ca… Carr… Aquilo do combinado dos ovos e das alcofas e dos muda-fraldas, filho do Velopata só tem uma opção.”.

“Ah é? E qual é?” – a Srª Velopata tirou os olhos da estrada e aguardou ansiosa a resposta.

“Tem de ser tudo em carbono. De preferência aero.”.

 

Abraços velocipédicos,

Velopata

2 comentários sobre “Muda-Fraldas

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