Com Janeiro e Fevereiro de 2016 arquivados seguem-se Março e o aguardado mês de Abril.
Março – Estaca zero.
Ainda de ressaca psoríacofílizíaca o Velopata tentou aproveitar Março, mês onde não existiam provas, para retomar a forma velopática. Três semanas de paragem forçada por compromissos psoríacofílicos e uma lamentável presença na Etapa da Volta em Fevereiro tinham deixado as suas marcas, não só físicas e principalmente psicológicas.
Regressado à estrada o Velopata treinou muito.
Depois treinou mais.
Sentia os pulmões tomarem o seu devido lugar na caixa torácica, as pernas recuperarem os lindos contornos musculares e até os pêlos do corpo demoravam mais tempo a crescer. A balança indicava novamente pesos em escalas etíopes. Os astros finalmente sorriam.
E o motivado Velopata treinou ainda mais e com maior dureza.
E adoeceu.
Uma gripe oriunda dos resquícios psoríacosíacos atirou o Velopata para o estaleiro e arruinou as poucas melhorias até então. Estaca zero na forma velopática.
Abril – No Hellgarve do Paulo Martins.
Chegava a mais aguardada prova do ano pelo pelotão amador algarvio. Uma das principais referências como comentador de ciclismo da atualidade, Paulo Martins, organizava uma corrida de ciclismo que atravessaria todas as subidas mais temidas do Centro do Universo Conhecido do Velopata, o Allgarve Roadfondue Paulo Martins 2016.
Dadas as dificuldades do percurso a participação acordada da Evo Team seria parca; não só o Velopata sentia obrigação de participar com o seu melhor (e provavelmente o pior), o Rei do Barranco também sentiu a necessidade de marcar presença, mentalizado à partida na ideia de um longo e tortuoso passeio com inscrição paga, em estradas onde pedala todas as semanas gratuitamente. Também o Pro Ressabiado apareceu ou não fosse esta uma oportunidade única para ressabiar com outros pros ressabiados que por lá pululavam.


Dado o tiro de partida os primeiros quatro quilómetros estavam neutralizados dado o estado do que diziam, em tempos, ser uma estrada alcatroada.
E a carnificina começou.
Bodycount; um, dois, três, tombavam como tordos nas bermas. Espreitando por entre os ombros de um pelotão nervoso o Velopata conseguia distinguir na frente o Pro Ressabiado, envolvido na refrega pelas primeiras rodas. Para trás o Rei do Barranco já tinha senha tirada muito antes da partida e nem sinal. Escassos metros à frente do Velopata ocorre uma travagem, derrapagem e por pouco uma bagunçagem e ficava para trás um conhecido do Velopata, o Chef, com o desviador traseiro feito em cacos, fruto da colisão com a roda dianteira de um outro marafado.
“Welcome to the jungle Velopata!” – pensou o Velopata para com o fecho éclair do seu jersey.
Era realmente uma selva onde a cada tiro de caçadeira saltava uma macedónia de legumes, se caçadores vegetarianos existissem. A cada curva, cada reta, cada quilómetro passado era vê-los parados na berma, olhos arregalados e faces em pânico por auxílio. Furos, quedas. Para o Velopata o falecimento encontrava-se reservado algures nos duros centro e trinta e seis quilómetros que tinha pela frente.
O constante sobe e desce da Serra algarvia aliado às escassas horas de treino de três semanas, a ressaca psoríacofílica e uma gripe depois, cedo as pernas do Velopata lembraram porque razão as etapas das provas no algarve são conhecidas no pelotão profissional como “parte-pernas”. Para o pelotão amador são conhecidas como “parte-estropia-mutila-amputa-pernas”. Este facto é muitas vezes esquecido pelos estrangeiros do norte do país que acorrem a estas provas.
E como os havia em monte.
“Não, ´tá a beire? Com eistes nóbos cêpos em cerâmica o atrito reduz-se em binte ou trinta por ceinto.” – o gajo pesava perto de cem quilogramas e destacava-se pelo matraquear de tio fanfarrão; “Tem é de ter cuidado com o medidour de potência senoum depois, no Straba, dá relaçõuns peso-potência de mais de oito wates por quilo carago!”.
“Isso foi coisa para custar quanto?” – questiona um outro, visivelmente interessado no tal cêpo em cerâmica.
“Fodi aí uns 500 eirios nesta merda para lhe tirar 10 gramas ó carago!”.
Era só o que faltava ao Velopata.
Tios bimbos estrangeiros do norte do país que trabalhavam mais a língua que as pernas.
Na frente de batalha o Velopata trabalhava em conjunto com outros dois sobreviventes dos primeiros desembarques inclinados; um gajo da Altimetria, equipa local, e um outro moço que tinha uma das mais bonitas bicicletas contemporâneas da BH, uma Cannondale SuperSix Evo. A pouca distância e desde que todos trabalhassem no grupo, facilmente Velopata e companhia regressariam à frente.
Rodou o Velopata, rodou o gajo da Altimetria, rodou o moço da SuperSix Evo, quadro clássico, toda a tecnologia, e chegou a vez do acima referido tio fanfarrão mostrar os seus dotes ao vento;
“Ah, não obrigado ´tá a beire, bócês ´tãou-lhe a dar bem e eu não gosto de andar de peito ao bento. Mas se desse para apanhar aquele grupo ali à frente era porreiro!”.
A petulância.
A visão do Velopata ficou nublada. Estes cem quilos de estrangeiro do norte do país achava que isto era o quê? Golfe? E nós, o quê? Os caddies?
O Velopata foi salvo pela Picota. Ou o gajo foi salvo da ira do Velopata pela Picota. Se tudo o resto falhásse a missão do Velopata tornar-se-ia fazer aquele gajo sofrer na roda. Sortudo, o fanfarronanço ficou-se pela inclinação de não-sei-quantos-por-cento-mas-vou-morrer-agora-Picota. O Velopata e restante grupo interessado em fazer a ponte à frente, podiam finalmente trabalhar sincronizados mais ou menos qualquer coisa, é sempre muito ego junto em tão curto espaço de carbono.

Na descida para a Boa hora fez-se a ponte para o grupo da frente, também em boa hora. Estava-se na base da subida para Benafim e novamente muito macho vestido em licra apertada e em subida amontoado dá nisto – começam os ataques de quem anteriormente trabalhava na frente do grupo. Parece que conseguir entrar ofende um dogma qualquer destes gajos. Ressabiados.
Tanto insistem e um pequeno grupo consegue-se escapar. O Velopata decide então juntar toda a sua mestria ao serviço da perseguição. Passava na frente quando foi surpreendido com uma voz feminina na sua roda;
“Força, trabalhamos todos que estamos quase a apanhá-los!”.
Quando cedeu o seu lugar o Velopata viu uma senhora.
O peso.
O Velopata não conseguia perceber quem pesava mais, a moça ou a bicicleta. Que era de carbono, 100% carbono, daquele que é mesmo só carbono, full aero carbono.
A troupe chegou ao ponto de separação dos percursos; um de menor extensão que evitava o Malhão e um outro, bem mais duro com o dito cujo e um sem número de primos malhões de menores, mas não menos sofríveis inclinações, como prenda. Trabalhava o Velopata quando a moça que o Velopata acredita agora, após posterior meditação, pesar realmente menos que a própria bicicleta perguntou;
“Que percurso vais fazer?”.
“O dos machos claro, o grande.”.
Em resposta ao Velopata as poucas mulheres presentes no grupo, incluíndo a magrela, seguiram o percurso mais exigente. A grande maioria dos homens despediu-se e seguiu o percurso mariconço.
“Pussys…” – resmungou o Velopata enquanto a imponência do Malhão se erguia sobre o alcatrão.
Passar as passas do Algarve. Nunca esta expressão fará tanto sentido para um ciclista como quando se encontra a subir as primeiras paredes do Malhão. Respiração, cadência e potência, velocidade média, nada disso interessa. Alto do Malhão. Uma curta mas mítica ascensão de apenas três quilómetros que deixa margem para pouco mais que sobreviver.
Chegou à mesa o prato principal. Servido sob a forma de gajo da velopata friendly Cannondale SuperSix Evo, estava feita a primeira vítima do Malhão. Por cima do ombro o Velopata já o tinha previsto; ouviu a respiração discordante até ao momento do crash pulmonar. A bicicleta abanou uma e outra vez e já se encontrava cadáver. Deixando o defunto para trás o Velopata tentou colar na roda da magrela que continuava a sua subida, supimpa como uma cabra silvestre.

Prato principal servido e despachado. O item seguinte no cardápio seria o amigo Velopata.
Por uma vez na vida o Velopata pensou que o mundo poderia realmente ser um lugar melhor se todos fossem talibãs. Não seria forçado a engolir o orgulho de macho alfa latino enxovalhado por uma fêmea magrela que nem na rua deveria andar, o seu habitat natural é a cozinha, com burka vestida e a confeccionar tabule para o jantar.

Com os músculos das pernas a implorar misericórdia e os pulmões em auto eject do peito, o Velopata chegou ao topo do Malhão tendo perdido a magrela e companhia de vista. O vexame. Que curiosamente mais prazer ao Velopata dá. Ser-se sovado por uma fêmea. É bom augúrio. É indicador que também as há a pedalar e tão bem como os melhores machos, prontas a ressabiar com os ressabiadores da elite amadora portuguesa e melhor, magras e solteiras. Se é que o look manequim etíope assenta bem a alguém. (Nota do autor: leitores do blog estão a ver como se pisca o olho às leitoras? Velopata sempre a contribuir.).
Merda. Seguia-se o constante sobe e desce das estradas pós-Malhão e para ajudar o São Pedro deixou a porta escancarada. E o Velopata sozinho com oitenta quilómetros de provação pela frente, o verdadeiro parte-pernas algarvio a começar.

Lançado vinha o moço que tinha uma elegante SuperSix Evo. As luvas, ainda não as tinha arremessado ao asfalto. Queria colaborar com o Velopata para tentar chegar novamente junto da magrela. Pelo sotaque o Velopata percebeu que este moço era um estrangeiro diferente. Parecia estrangeiro das ilhas. Mas isso interessava pouco. Apanhar a magrela era o objectivo e o estrangeiro das ilhas e o Velopata deram o litro em concentração máxima.
Nada, nem um sinal da magrela. Nem o resto de um gel ou a embalagem plástica de uma barrinha energética, perdidos ao vento. Nicles.
“Pelo menos não são porcas!” – o Velopata não pode confirmar se só pensou ou se chegou mesmo a gritar isto para olhar atónito do estrangeiro das ilhas. Ia ébrio de perseguição.
“Não aguento muito mais!” – o estrangeiro das ilhas gritou de volta.
“Hã?”.
“Não aguento muito mais!”.
“Queres que reduza o ritmo?” – o Velopata já torçia o sobrolho.
“Não. Segue tu. Se estás bem não percas tempo comigo.”.
“Na boa! Olha, és de onde?”.
“Funchal.”.
“Na Madeira?”.
“Então queiras que fosse onde?”.
“Podia ser Funchais que é aqui no Algarve ao pé da Tôr.”
“Ah, não, é Funchal na Madeira mesmo. “.
“Treinar lá não deve ser fácil.”.
“Onde?”.
“No Funchal da Madeira.”.
“Sim, é difícil, temos muita subida e bem inclinada.”.
“Não é só isso. Pior mesmo são os percursos.” – notou o Velopata.
“Os percursos? Como assim?”.
“Para fazeres um treino de cento e cinquenta quilómetros quantas voltas tens de dar à ilha? Deve ser um bocado seca passares trinta ou quarenta vezes no mesmo sítio! Quantas voltas diferentes é que vocês podem fazer lá? Duas ou três, não?” – com esta última afirmação o Velopata percebeu que o estrangeiro das ilhas não partilhava o seu sentido de humor que traduzido em palavras da Srª Velopata é, estúpido.
Desmoralizado por ouvir a verdade da boca do Velopata ou esgotado o reservatório de poncha, o estrangeiro do Funchal da Madeira partiu. Para trás. O parte-pernas deixava lesões que levariam dias a sarar no corpo e mente.
O Velopata seguiu a sua demanda. Mas não voltou a ver a magrela, a senhora das 5Quinas ou mesmo o gajo que pesava o dobro do Velopata mas subia bem o suficiente para deixar um sem número de carocheiros para trás. Viu sim, as almas penadas que terminavam a distância menor da prova. Perto da meta, os dois percursos estabelecidos pela organização voltavam a encontrar-se.
Entre os cadáveres encontrava-se de tudo e ainda bem, o Velopata gosta de ver cadáveres de todos os formatos desde que montados numa bicicleta. É indicativo de uma boa corrida, carregada de ressabianço e espectáculo. CSI Velopata.
“Isto aqui é pior que na Golegã. Eu fiz o granfondue deles e este é bem mais duro!”.
“É mais duro que o Gerês. Lá o sobe e desce é mais espaçado na estrada.”.
“Epá, isto aqui é do carago. Lá no norte não cansa assim.”.
A opinião era unânime.
Pelo menos, por um dia, umas poucas horas, conheceram um Algarve que não é apenas praias, bares, lojas gajas boas, daquelas mesmo boas em biquini, e sim um Hellgarve de sobe e desce serrano aniquilante, idosas a servir à mesa serra algarvia fora, com mais pêlos nas pernas que todo o corpo dos ciclistas do pelotão juntos, o terror do Alto do Malhão.
Regressem às vossas cidades e digam que no Algarve não existem subidas.
I dare you. I double dare you motherfucker.
O Velopata faz dele as palavras de Jules em Pulp Fiction (Nota do autor: Tempo de Violência, é o título em português. Isto é a sério?). Porquê o Pulp Fiction pergunta o leitor? Porque era exatamente ao que as pernas do Velopata se assemelhavam por esta hora. Polpa.
Por entre os escalfados, mortos e estropiados o Velopata navegou até à linha de meta. Soube depois que o Pro Ressabiado sofreu uma hipoglicémia, a sua já habitual desculpa, não conseguindo acompanhar o grupo da frente, provavelmente mais magro e mais solteiro, tendo-se ficado pelo Top 20. O Rei do Barranco chegou quarenta e cinco minutos depois do Velopata. Ainda assim, um saldo positivo para a Evo Team – nenhum membro fez figura triste.
E assim terminava Abril.
Maio era já um ansioso mês na agenda da Evo Team. Seria a primeira participação numa conceituada prova no estrangeiro do norte do país.
Abraços velocipédicos,
Velopata
Mas faz assim tanta diferenca rapar os pelos? A serio! Fisicamente falando ao nivel da aerodinamica.
CurtirCurtido por 1 pessoa