O Velopata acordou como tantas vezes tem acordado nos últimos dias. Cedo demais e com uma gata esfomeada aos saltos no corpo ainda entorpecido pelo sono. Tomou um pequeno almoço carregado, antevendo um treino pesado, enquanto a gata o acompanhou, alimentando-se de 3 a 4 pedaçitos de ração. A cara-de-pau desta felina. Um escândalo para que o casal Velopata acorde e a vá alimentar, para depois se saciar com apenas uns míseros pedaçitos da ração. Haja paciência para este demónio disfarçado de felino.
De papo cheio de iogurte biológico misturado com aveia biológia e variadas sementes, o Velopata foi até à sacada para o seu momento zenóreligioso. O cigarrito e o jerrican de café.
BRUUUUMMM!
Um relâmpago iluminou a lágrima que desceu pela face do Velopata. A metereologia apresentava-se miserável. Raios, coriscos e trovões. Nem os piratas se aventurariam. “Ah e tal, e a cena dos belgas?”, pensou o Velopata. Em jeito de resposta cai um relâmpago tão forte que as luzes da rua e habitações vizinhas desaparece. Os belgas podem ser muita coisa mas não são estúpidos. Com trovoada, relâmpagos, vento e chuva deste calibre, treinar na estrada está fora de questão.
No seu pedestal a Estrela Vermelha chora, está toda supimpa já de banhinho tomado e quadro a reluzir de tal modo que tentar tirar uma foto só leva à ofuscação da lente. No cérebro do Velopata ecoa o seu lamento, já sentiu que neste feriado de 1 de Dezembro não vai sair para a estrada (nota do autor: o Velopata e a Estrela Vermelha estão conectados por uma ligação neuroencéfalofibrocarbónicoaero).
Sabendo que a sua Estrela Vermelha estava sedenta de alcatrão, foi um Velopata desaustinado que se deslocou até à sala para acender um incenso de tofu, na tentativa de apaziguar a ira de São Pedro. A esperança de pedalada é sempre a última a morrer.
“Se com este tempo não vais pedalar podemos aproveitar e ir às compras. Tu precisas de roupa para o jantar.” – a Srª Velopata entrou em cena.
“Já foste…” – pensou o Velopata.
À boa maneira Paulinho Santos, ou mesmo Maxi Pereira, a Srª Velopata fez uma entrada a pés juntos que não deixou escapatória ao Velopata. E o árbitro nem falta apitou.
O Velopata decidiu fazer o que a maioria dos maridos faz quando frustados com a vida. Não, não foi dar uma carga de violência doméstica na Srª Velopata, isso ele faz só quando o clube do seu coração, a União Desportiva de Cascais, perde um jogo da Liga dos Campeões, nesse desporto menor que é o futebol. Foi sim descarregar nos rolos. 3 horas e meia de rolo de treino, para ser mais exacto. Equanto escreve estas linhas o Velopata ainda sente as pernas a latejar da sessão de flagelação auto-infligida.
A verdade é que o Velopata tem brevemente o jantar de Natal da empresa onde afincadamente trabalha. E como todos os anos, o Velopata está mais magro e lógicamente a roupa do ano anterior assenta que nem um saco de batatas de serrapilheira. Se há actividade para a qual o Velopata tem zero paciência, para além de fazer a barba, é ir às compras de roupa. Roupa civil, claro. Ainda se fosse roupa de ciclismo, o Velopata até pulos de alegria daria. Ainda para mais com o temporal o Velopata sabe para onde vão 99,9% da população – direitinhos para o centro comercial. Se não são 99,9%, pelo menos, assim o parece.
E foi assim que o Velopata deu por ele no interior de uma conceituada loja de roupa apinhada, a Srª Velopata não o deixa vestir uns trapos quaisquer para o referido jantar de Natal.
Skin fit. Skinny fit. Regular fit. Comfort Fit. Cross fit. Calças que parecem concebidas para ir à pesca ou atravessar um riacho. Outras são tão apertadas que o Velopata fica com um andar esquisito e voz de eunuco. Ou já vem estragadas e cheias de buracos, principalmente nos joelhos. T-shirts e sweat-shirts que pelo comprimento mais parecem vestidos. Casacos para homem que o Velopata jura ter visto na secção de mulher da coleção passada. Camisas em cores e padrões que até o Manuel Luís Goucha teria vergonha de usar. Resumindo, as lojas transbordavam o que a juventude chama agora ao estilo, o chuégue.
“Algo de muito podre se passa no mundo da indumentária”, diria o guarda Marcello.
Algures no que parecia ser o refugo da loja, aquela roupa na qual já ninguém pega e quem a escolhe é olhado de lado pelos transeuntes, qual indumentária do século passado, o Velopata lá descobriu umas calças de corte tradicional e uma camisa preta simples.
No interior do provador, após aqueles 5 minutos à espera pela sua vez na fila, que no momento mais parecem 2 horas de tédio, a constatação foi óbvia. A velopatia não só alterou o Velopata psicológicamente como também lhe alterou o físico. E é por esta razão que o Velopata tem um aviso a fazer à população.
Homens e mulheres deste terceiro calhau a contar do sol, quando a crise da meia-idade se instalar e procurarem um desporto que vos melhore o fitness ou, caso seja esse o objectivo, vos deixe com um corpinho mais apetecível para o sexo oposto (ou o mesmo, isso é lá com vocês), por favor retirem o ciclismo dessa equação.
Morfológicamente escrevendo, o ciclismo irá deixar-vos assimétricos. Magros como um etíope na parte superior do corpo e pernas de um deus grego esculpido pelo próprio Miguel Ângelo (não o dos Delfins, o outro, o renascentista). E quando forem adquirir roupa civil vão entender. Ou a calça tem o comprimento correto mas fica apertada nos músculos das pernas, logo são obrigados a escolher um tamanho maior que não aperte as pernas, mas depois fica larga na cintura… Ou a camisa fica extremamente larga no peito e nos braços, mas serve perfeitamente no comprimento… Assim como existem lojas de roupa especializada em indumentária para pessoas que comem demais, no vulgo, os gordos, também faria sentido existirem lojas de indumentária especializada em atletas que pratiquem desportos morfológicamente disfuncionais como o ciclismo.
Dúvidas?
Atente às duas interações a que o Velopata foi submetido recentemente;
“O tê amige é assim come tu, tode magrinhe…” – diz a cunhada do Velopata no seu irrepreensível sotaque algarvio.
“É, este desporto faz-nos isto, mas ó cunhade, devias ver as nossas pernas! Mais rijas que troncos de madeira!”
“Não interessa, vocês ficam todes com ar de agarrades.” – rematou.
E uma outra;
“Ai filho… ´Tás cada vez mais magro. Devias ir fazer uns exames!” – afirmou a preocupada Mãe do Velopata.
“Ó mãe, mas eu sinto-me melhor que nunca! Devias ter-me visto este fim de semana a descarregar uma data deles serra acima!”
“Não me interessa. Essa magreza toda não é saudável. Olha, come mas é mais uma pratada deste cozido à portuguesa vegetariano que a mãe fez.”.
“Eu como mãe. Mas já é o terceiro prato que me enches. Acho que como só mais este e fico por aqui.”.
“Vês? Estás com falta de apetite! Isso é sinal que algo não está bem!”.
Por isso, caro leitor, se decidir dedicar-se a este mui nobre desporto que é o ciclismo prepare-se para ver aparecer ossos desconhecidos até então no seu corpo, bem como ter amigos de longa data que após um interregno lhe vão perguntar “Está tudo bem contigo? Estás tão magro…”. E esqueça todo o atual guarda-roupa. Tudo vai ficar largo, inclusivé os peúgos – ninguém quer deixar de calçar aqueles peúgos brancos da raquete, tão difíceis de encontrar atualmente.
Mas o leitor dirá que conhece um primo do vizinho do sobrinho que é ciclista e pelo contrário, não é nada magro. Ressalvem-se pois as 2 grandes classes de ciclistas que pode encontrar por esse país fora;
- o ciclista que treina arduamente, é magro que nem um somali e quando confrontado com isso ainda responde “Achas? Eu ainda queria perder mais 1 ou 2 quilinhos!”. Este é um ciclista difícil de reconhecer e diferenciar do Agarradus vulgaris; ao contrário do tóxcóindependente (como o Velopata ouviu uma senhora de bigode dizer na TVI), que pratica o seu ofício nos parques de estacionamento e estações de comboio pedinchando trocos, o carocho velocipédico é facilmente reconhecido por efetuar o seu voo predatório, qual falcão faminto, nas lojas da especialidade sempre em busca do novo componente, em tudo igual ao anterior que equipava a bicicleta, com a diferença que o novo modelo é 0,0005 gramas mais leve, justificando assim o investimento de 500 euros.

- o ciclista que pedala 1 hora, ou aproximadamente 30 quilómetros, acompanhado de outros da mesma estirpe, para depois, já extenuado, se afogar numa pândega de alcóol e um qualquer animal trespassado por um espeto, posteriormente assado nas brasas. Se esse animal for ainda uma cria ou bébé, diz que é mais saboroso. Este tipo de ciclista é facilmente identificável pois a sua pançoca roça no tubo superior do quadro da bicicleta que, regra geral, é um topo de gama full carbono, 100% carbono daquele que é mesmo carbono, aero carbono, ou então faz-se montar num cangalho do século passado, lembrando mais um escadote chinês equipado com rodas do que própriamente uma bicicleta.

O Velopata lá conseguiu comprar umas calças e uma camisa para o jantar de Natal da empresa, o casaco do ano passado, pelo andar da carruagem, ainda dá para safar mais um ano. Já em casa o Velopata testou a indumentária e percebeu que também o sapatinho de ir ao pito (termo inventado por um amigo, senhoras leitoras não se ofendam), se tornou também desconfortável tendo deixado de servir no xispalhame do Velopata.
O Velopata lá pegou na Srª Velopata e foram até uma conceituada sapataria procurar um sapato bonito para o jantar mas também, segundo imposição do Velopata, prático para o dia-a-dia. E não para “ir ao pito” que o Velopata é muito sério nas suas relações – se não acreditam perguntem à Estrela Vermelha.
O Velopata experimentou vários sapatos em vários tamanhos, no entanto, foi a Srª Velopata que acabou por descobrir o sapato adequado. Escolhido o tamanho o Velopata virou o sapato e observando a sola rematou para a Srª Velopata e para a empregada da loja que o atendia;
“Eu gosto deste sim, mas não percebo esta sola. Não tem os buracos para colocar os encaixes.”
Abraços velocipédicos,
Velopata