E tudo o vento empenou – à conversa com o Homem da Marreta

“Vais levar com vento no focinho em monte”.

O Canhão de Lagos bem avisou enquanto processava uma garfada na sua torta de batata-doce. Estava combinado que me acompanharia até ao Barranco do Velho em modo de recuperação após a ida a Monchique dias antes. A partir daí o Velopata seguiria sozinho a rota preparada na véspera; Cachopo, depois Martinlongo e Alcoutim, de seguida até Mértola e regresso por Almodôvar atravessando a Serra do Caldeirão. Aproximadamente 250 quilómetros. Coisa pouca para quem tem a mania que é ultra ciclista.

Nos primeiros 30 quilómetros até ao Barranco já se tinham sentido as dificuldades. Vento forte lateral que se traduziu em zero conversa. Acompanhados pelo som dos pneus no asfalto, o restolhar das árvores e a respiração pesada apenas questionámos a ausência do Rei do Barranco que viemos depois a saber ficou retido por problemas relacionados com o álcool, qual jovem estudante universitário durante as manhãs da semana académica – a bela da ressaca.

Uma visita inesperada

Perto do Barranco do Velho começamos a ser seguidos de perto por uma lata. Ficando para trás na última subida o Velopata percebeu que a lata se posicionou ao lado do Canhão de Lagos e que trocavam impressões.

“Olha-me este. Ou já está a mandar vir ou então é nosso conhecido.” – pensei.

A lata deixa o Canhão de Lagos para trás e avança para se posicionar ao lado do Velopata. Do interior ouço;

“Tens de me dizer onde é que bateste com a cabeça!”

Supresa bem agradável. Um dos melhores mecânicos do mundo, durante uns bons anos foi responsável pela saúde da Estrela Vermelha. Para além de recomendar bom material sempre deu bons conselhos ao Velopata – notem que não quero desfazer o trabalho dos médicos atuais da Estrela Vermelha, longe disso, mas o carinho com que um dos melhores mecânicos do mundo a tratava era especial. Sempre que saída da oficina a Estrela Vermelha até reluzia. Uma perda lamentável para o ciclismo algarvio que por razões que para aqui não interessam (pelo menos neste post), tenha colocado temporariamente a carreira de lado (é desejo secreto do Velopata que ele regresse).

Conversa puxa conversa e lá ficámos mais de uma hora sendo o principal tema a razão do Velopata pedalar durante tantos quilómetros. Ambos concordaram; ou o Velopata bateu forte e feio com a cabeça ou a droga que fumou era muito boa (ou mesmo muito má!).

Despedimo-nos e o Velopata lá seguiu viagem.

Uma nova categoria no Strava

Vento.

Depois mais vento.

Em Martinlongo o Velopata hesitou;

“Isto está horrível. Estes 30 quilómetros até Alcoutim vão ser um martírio. Devia era voltar para trás mas isso era mesmo à minha equipa. Devia ter ouvido o Canhão. Olha para isto! Nas descidas a bicicleta até perde velocidade e quase pára! Porra! Não, vá. Relaxa que isto há-de passar. Gere bem até Alcoutim para não ficares todo roto. Só por isto já vale a pena parar em Alcoutim, não queria mas tenho de recuperar energia para depois. Até porque de Alcoutim até Mértola o vento vai bater nas costas e até ajuda. E os senhores da metereologia disseram que o vento reduzia ao longo do dia. É só mais este bocadinho. Epá… Já estou nesta estrada há mais de 40 minutos e ainda faltam 20 quilómetros. Está bonito isto, está…”

Para verem que o Velopata não está a exagerar, algo de que é comunemente acusado, após descarregar o treino para o Strava, este enviou uma mensagem de parabéns pois neste segmento de Martinlongo-Alcoutim tinha alcançado um PW – Personal Worst.

Foi neste momento que pelo canto do olho vi atrás de uns arbustos o que me pareceu ser uma figura humana de grandes dimensões. “Algum bicho ou um caçador”, pensei. Não podia estar mais errado.

Paragem breve em Alcoutim para recuperar o fôlego. Siga que se faz tarde.

A saída de Alcoutim para Mértola apresenta-se como uma subida dura mas com paisagens que valem bem a pena. Um pastor cumprimenta-me enquanto as suas ovelhas olham para mim. Juraria que estavam a gozar comigo – “Com este vento és pouco parvo és!”.

Até Mértola foi um tiro. Vento de costas que proporcionou ao Velopata boas dois segundos lugares, um terceiro e um décimo nos rankings dos segmentos do Strava. “Vês, não estás assim tão mal” – pensei sem saber o que o destino me aguardava.

Pit-stop em Mértola. Carrego na sandes de quejio, cola fresca com gelo, pacote de batatas fritas e café duplo. Reponho água nos bidons. Telefonema à Sra. Velopata para não ficar preocupada. Estranho que todos olhem para mim de lado como se fosse um extraterrestre enlicrado. Será que estou mesmo magro demais como referiu horas antes o melhor mecânico do mundo?

O Homem da Marreta

Sigo para Almodôvar. Quem já fez a estrada N267 sabe do que estou a falar. “Aquilo” não é bem uma estrada. São retalhos do que parece ter sido em tempos alcatrão misturados com pedaços de cimento. A Estrela Vermelha sente o carbono a chocalhar por todas as suas fibras. Até o cérebro do Velopata cochalha.

“Tu és é parvo. Mas se já sabias que a estrada estava assim porque raios é que vens por aqui?!” – o Velopata, qual católico medieval arrependido tem o típico hábito de se auto flagelar.

Agora juntem o mau estado do piso ao vento lateral. Não satisfeito com a primeira dose de 30 quilómetros entre Martinlongo e Alcoutim vinha agora a segunda dose – 40 quilómetros de vendaval lateral entre Mértola e Almodôvar.

Se as ovelhas estavam a gozar comigo ou não nunca saberei mas os bambis que vi correrem pela planície alentejana sim – todos frecos e airosos – mas que grande lata!

Distraído com os bambis nem me apercebi da gigantesca figura humana que num ápice saltou para a estrada começou a andar ao meu lado. Isto dar-vos-á uma ideia clara da velocidade a que ia. Mal lhe vi a face, o olhar ficou fixo no que esta personagem trazia na mão – uma enorme marreta.

“Boa tarde” – um tom seco e áspero.

“Bo…boa tarde” – respondo a medo.

“Olhe, tenho indicação de que você tem a marretada para levar.”

“Como?” – nem queria acreditar.

“Então o cansaço já o faz ouvir mal? Tem de levar a marretada.”

“Tem a certeza?”

“Então mas você acha que a Autoridade se engana nestes assuntos?”

“Autoridade? Mas que autoridade?”

“A Autoridade Internacional da Marretada Velocipédica.”

“Epá, tenha lá dó de mim. Ainda me faltam 120 quilómetros até casa. Não dá para adiar nem que seja por uns quilómetros? É que ainda me falta atravessar o Caldeirão!”

“Marretada é marretada. Acha que isto é a tropa e dá para adiar? Diga-me lá uma coisa, com tantos quilómetros já feitos com um vendaval destes você achava que era o quê? O Super-homem? Você praticamente convidou-me.”

“Eu tenho aqui umas barrinhas de energia que posso comer. E até pensava parar em Almodôvar para recuperar um pouco e beber café” – não custa nada tentar adiar, pensei. Assim como assim, a marretada já estava garantida.

“Coma o que quiser, beba o que quiser. Da marretada já não se livra.”

Zás!

Caíu-me em cima uma senhora marretada, era mesmo a Mãe de todas as marretadas.Tal como apareceu o Homem da Marreta partiu. Provavelmente ao encontro de mais um teimoso qualquer como o Velopata que não aprende que nestes dias mais vale reduzir a extensão da volta ou então ficar pelos rolos de treino. Ou descansar. Ó Canhão de Lagos, como tinhas razão!

Mais uns quilómetros feitos e a N267 parecia não terminar. Verociferei ao vento, chamei nomes feios aos senhores da meteorologia e às suas mães, critiquei os nativos da região que não insistem com os seus governantes para arranjar as estradas. Tudo sem efeito. Não havia muito a fazer a não ser pedalar ao relantim até Almodôvar.

O indignado de Almodôvar

Última pit-stop nas bombas de gasolina à saída de Almodôvar. Dirijo-me ao balcão onde sou surpreendido pela senhora que lá trabalha;

“Olá! Já deu para perceber que chegou bem da última vez que aqui passou!”

Solto uma gargalhada – a senhora lembra-se de mim desde a última vez que ali passei, às 11 da noite, na aventura até Évora.

“Sim, cheguei bem obrigado.”

“Vem com um ar cansado. Qual foi a aventura hoje?”

“Hoje foi bem difícil. Saí de Faro, Cachopo, Alcoutim, Mértola e agora vou daqui para Faro. Mas o pior está a ser o vento”

“Pois isto hoje está cá uma ventania. Então e o que vai ser?”

Sento-me na esplanada enquanto a simpática senhora me traz um gigantesco pão de deus com queijo e uma cola bem fresca. Um grupo de nativos senta-se em amena cavaqueira numa mesa ao meu lado. Ignoram-me. Enquanto afinfo com fé, tentanto afastar os pensamentos do Homem da Marreta, reparo que o senhor que trabalha na parte da bomba de gasolina enchendo os tanques dos carros, olha para mim. Esboça um rasgado sorriso e avança na minha direção.

“Bons olhos o vejam! Então naquela noite sempre chegou bem a Faro! Então e que maluquice é que foi fazer hoje?”

Retorqui a simpatia dele e expliquei novamente o percurso que me havia levado até ali.

“Epá isso é bem duro. Quantos quilómetros é que vão ser se ainda vai até Faro?”

“250 mais ou menos” – respondi de sorriso triunfante mas oco de forças no interior.

 

Neste ponto a conversa na mesa dos nativos cessou para se concentrarem na nossa. Ao ouvir a quilometragem um dos nativos na mesa ao lado não se conteve e exclamou;

“250 quilómetros?!?! Com esta ventania?”

“Sim, não tem sido fácil até aqui.”

“Mas assim você vai chegar de noite a Faro! E está sozinho?”

Aceno afirmativamente.

“Mas isso é um perigo. E ainda por cima vai atravessar o Caldeirão! Então mas não arranja ninguém para vir consigo? Imagine que lhe dá uma coisa má!”

“Não dá nada. O que é o pior que pode acontecer?” – entendo o que o senhor quer dizer mas infelizmente a malta da minha equipa raramente está inclinada a tanta quilometragem.

“Olhe, imagine que você vai parar a uma valeta ou cai para aí… Devia andar sempre acompanhado, pelo menos com mais um!”

“Olhe ainda hoje falei de si. Passou por aqui um grupo que esteve a fazer a N2 toda de bicicleta. Mas vocês andam a treinar para alguma coisa?” – o senhor da bomba tentou afastar a conversa negativa.

“Bem, eu tenho uma prova em que gostava de tentar participar em 2018. A Transcontinental Race” – aproveitei para me armar em carapau de corrida.

“Que é isso?” – perguntam em uníssono.

“É uma corrida que atravessa toda a Europa, terminando na Turquia. São 4000 quilómetros em autonomia.”

“Sozinho?!?!” – o nativo, que era o mais velho da mesa, estava mesmo inconformado.

“Sim, sozinho. Agora imagine lá, o gajo que venceu este ano fez esses 4000 quilómetros em 9 dias.”

Na mesa com o nativo indignado estava mais um casal. O rapaz nunca falou e até tinha cara de quem me achava gabarolas, já ela, por sua vez, parecia mais simpática;

“Bem, terminar uma prova dessas deve ser de uma satisfação. Olhe já eu nunca gostei muito de desporto.”

“Menina, isto não já não é desporto, é outra coisa.” – acho que tão cedo aquele senhor vai continuar a espalhar indignação sobre a minha pessoa em Almodôvar.

Pedi um abatanado. Fumei o último cigarro que levava comigo o que espantou ainda mais o já indignado.

“E ainda por cima fuma!” – rematou.

Ri-me enquanto o senhor da gasolineira se afastou para atender uns clientes que chegaram. Carreguei pela última vez os bidons com água e despedi-me de todos. Desejaram-me boa viagem e claro, o indignado pediu-me para ter cuidado.

Após passar a fronteira do Alentejo com o Algarve parei mais uma vez – precisava baixar o nível hídrico da bexiga e acender os faróis da bicicleta. Já ia atravessar o Caldeirão de noite.

Perto do Barranco do Velho sinto o telemóvel vibrar nas costas. “Deve ser a Sra. Velopata” pensei. É sempre bom quando os amigos se preocupam conosco e esbocei um largo sorriso quando percebi que era uma mensagem do Canhão de Lagos – “Já chegáste?”. Aproveitei e em gesto de agradecimento telefonei-lhe. Desejou-me boa viagem mas não sem antes gozar por ter sido louco ao ponto de ir fazer este percurso com o vendaval que já se adivinhava. Desligo e ligo à Sra. Velopata que me diz as exatas palavras que precisava de ouvir;

“Estou a fazer guisado de soja com batata-doce, abóbora e feijão verde”.

Não precisei ouvir mais nada. Esqueci o Homem da Marreta e voei para Faro.

Em casa, à socapa, a Sra. Velopata tirou 2 fotos que mostram bem o estado deste vosso amigo e resumem o dia.

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Abraços velocipédicos,

Velopata

 

2 comentários sobre “E tudo o vento empenou – à conversa com o Homem da Marreta

  1. Estou a adorar esta tua nova panca. Da vibe gotica, ao gosto por musica quase-boa, passando por bobines e direccao por detras da camara ate as hortalicas… o que faz um homem feliz e a realizacao dos seus sonhos e desejos. Adoro o blog, parto-me a rir e quero conhecer o homem da marreta e o indignado de Almodovar… Mas quem quero mesmo conhecer e o gigantesco pao-de-deus com queijo da senhora da tasca.

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